EmFoco Vem de Minas a luz que ilumina pobres do mundo Invenção de mecânico de Uberaba já chegou a mais de 15 países e a mais de um milhão de casas

Por: Luce Pereira - Diario de Pernambuco

Publicado em: 30/08/2017 07:24 Atualizado em:

Arte: Samuca
Arte: Samuca
Doralice F. trabalhou durante 18 anos para um casal de professores doutores da universidade. Chegou à casa mocinha, por volta dos 22, e passou a tomar cada vez mais gosto pelos assuntos que dominavam as rodas de visitantes, quase sempre formadas por pessoas da academia, artistas, escritores, gente da cabeça aberta. Lá com os próprios botões, à certa altura, reconheceu-se como alguém que apreciava muito aquelas conversas, apesar de nem ter terminado o primeiro grau. Era algo natural nela, que se manifestava quando via pela frente uma revista abandonada na rua ou, no lixo, um livro (mesmo incompleto). Lia, não importando se sob uma luz fraca do cômodo que compartilhava com a amiga Creusa, num Alto da Zona Norte, para onde ia só nos fins de semana. E sempre que os patrões tinham algum tempo expunha algumas de suas dúvidas a respeito do que lera. Relacionava-se bem com os dois e, obviamente, passou por maus bocados quando eles decidiram aceitar convite para lecionar em uma universidade espanhola.

Começo o texto falando um pouco sobre Doralice, porque voltei a encontrá-la, recentemente, mas nada feliz com os novos patrões, cuja realidade profissional está diretamente ligada ao mundo das finanças. Poucas reuniões em casa e com gente de conversa pesada, sobre números, economia, política. Então me contou que tem a maior admiração por pessoas que pensam nas outras e, de tanto pensar, acabam descobrindo algo que muda a vida de muitas gente. Creio que ela gostaria de ser uma delas e que, quem sabe, se houvesse ficado por muito mais tempo na companhia dos antigos empregadores poderia ter recebido apoio para se aventurar por este caminho.

O “se”, sempre ele ajudando a causar desilusões. Estava maravilhada com o que leu há poucos dias sobre o mineiro de Uberaba Alfredo Moser, que em 2002 inventou a luz que ilumina as casas dos pobres, durante o dia, cuja descoberta já chegou até ao Quênia (África), por causa da simplicidade: uma garrafa pet, água, cloro e a luz do Sol. Fez-me prometer que escreveria algo sobre ele, para que mais “povo carente” possa depender menos dos “tubarões que vendem energia”. Aquele tom nada capitalista, acho que não agradaria mesmo aos patrões atuais.

Na verdade, já há muito eu queria escrever sobre a descoberta da luz de Moser, sobretudo depois de assistir à corrupção apontando para caminho em sentido contrário – a tirar da população pobre a chance de sobreviver com um mínimo de dignidade. Em 2002, antevendo sérios problemas decorrentes da ameaça de um apagão, o mecânico mineiro lembrou-se de solução simples proposta por um antigo chefe e aplicou-a ao momento: com garrafas pets contendo água e cloro, que pendurou em um local do teto passível de receber os raios do sol, conseguiu clarear bem alguns cômodos da casa. Cada garrafa garantia luz entre 40 e 60 volts. A ideia logo passou a vizinhos e a um supermercado do bairro, mas, de tão fácil, barata e eficiente, atravessou o oceano, chegando a mais de 15 países. Estima-se em mais de um milhão o número de casas se beneficiando da invenção, que tem contribuído para diminuir um déficit monstruoso: a ONU calcula que um quinto dos lares mundiais ainda segue sem eletricidade. Só nas Filipinas, onde um quarto da população vive abaixo da linha da pobreza e a energia é muito cara, mais de 140 mil casas já contam com a luz de Moser.

Talvez Doralice vá gostar de saber que a invenção não fez do “Thomas Edison” brasileiro um homem rico, mas uma pessoa feliz com a possibilidade de, inadvertidamente, ter contribuído para melhorar as condições de vida de milhares de pessoas ao redor do planeta. Tão carentes andamos de indivíduos que trabalhem pelo bem comum que esses podem, merecidamente, ser reconhecidos como heróis nacionais: seguem pacatos cidadãos, mas decididos a fazer a diferença ao propor soluções baratas para necessidades cotidianas de habitantes para os quais qualquer ajuda se mostra bem-vinda. É de gente assim que o mundo anda precisando.


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