Inclusão Justiça concede aposentadoria a 27 portadores de doença rara e letal A enfermidade é fruto de uma mutação genética que provoca hipersensibilidade a luz e deixa os pacientes mais suscetíveis ao câncer de pele. O fenômeno foi revelado pelo Correio Braziliense, por meio de uma série de reportagens

Por: Renato Alves -

Publicado em: 28/08/2015 20:44 Atualizado em: 28/08/2015 20:49

Cerca de 200 famílias moram em Araras. A maioria é formada por casamento entre parentes, principalmente primos. Foto: Gustavo Moreno/CB/D.A Press
Cerca de 200 famílias moram em Araras. A maioria é formada por casamento entre parentes, principalmente primos. Foto: Gustavo Moreno/CB/D.A Press

Após décadas de descaso do Estado com os doentes, o Poder Judiciário concedeu aposentadorias por invalidez e benefícios sociais a 27 pessoas diagnosticadas com xeroderma pigmentoso no povoado de Araras, pertencente a Faina, município do noroeste goiano com 8 mil habitantes, a 510km de Brasília. Rara, letal e incurável, a enfermidade é fruto de uma mutação genética que provoca hipersensibilidade a luz e deixa os pacientes mais suscetíveis ao câncer de pele.

Os moradores do lugarejo entraram com o pedido em 2010. No entanto, eles tiveram a solicitação rejeitada, mesmo diante de tantas evidências da periculosidade do trabalho e do avanço rápido da doença. A história mudou de rumo após a realização de um mutirão realizado pelo Tribunal de Justiça de Goiás, em 20 de agosto, para analisar os casos. Seis magistrados goianos foram à localidade para ouvir os doentes e coletar todos os documentos.

Os juízes constataram o que o Correio Braziliense revelou no início de outubro de 2009, por meio de uma série de reportagens, e o Ministério Público de Goiás reconheceu após visita de seus integrantes à vila. Aquelas pessoas não poderiam trabalhar sob o sol forte. Muitas, mutiladas devida às dezenas de cirurgias para retirada de câncer de pele, não tinham condições de exercer qualquer profissão. Mas todos trabalhavam na roça para ter o que comer e vestir.

A conquista da aposentadoria e de outros benefícios é muito comemorada em Araras. “Estamos muito felizes. Foi uma grande luta. Significa muito para muita gente”, ressalta Gleice Machado, presidente da Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso (AbraXP). Criada em Araras após as reportagens do Correio, a entidade reúne mais de 400 pessoas com a doença, moradoras de todos os cantos do país.

Apesar da tão desejada aposentadoria, os doentes de Araras ainda precisam de muito para viver com dignidade e conseguir fazer o tratamento, segundo Gleice, moradora do povoado e mãe de um adolescente com xeroderma. “Entre as nossas prioridades estão a adequação das casas (de maneira a torná-las menos quentes), o asfaltamento da estrada que liga Araras a Faina e outros meios de trabalho, pois a aposentadoria é apenas um complemento da renda”, diz a líder comunitária.

Fenômeno raro


 José Cláudio Machado tem xeroderma pigmentoso, uma doença genética que atinge moradores de povoado de Faina. Foto: Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press
José Cláudio Machado tem xeroderma pigmentoso, uma doença genética que atinge moradores de povoado de Faina. Foto: Ronaldo de Oliveira/CB/D.A Press


O Correio revelou ao Brasil e ao mundo, no início de outubro de 2009, o drama de 24 portadores de xeroderma residentes em Araras. A doença, transmitida de pai para filho, pode ou não manifestar em algum momento de suas vidas. No caso dessa comunidade, ela atingiu a quarta geração. À época, além dos que lá moram, outros dois nascidos na localidade e residentes nos Estados Unidos carregavam a moléstia. Ao menos 20 integrantes da mesma família morreram por causa dela nos últimos 60 anos.

Cerca de 200 famílias moram em Araras. A maioria é formada por casamento entre parentes, principalmente primos. E é justamente essa cultura que tem levado à perpetuação e proliferação do xeroderma na comunidade, pois trata-se de uma enfermidade recessiva, mais comum entre nascidos de casamentos consanguíneos (entre parentes), em que a chance de duas pessoas terem o mesmo erro genético é maior.

A incidência média de casos no mundo é de um em cada grupo de 200 mil pessoas. Em Araras, são ao menos 21 casos, em uma comunidade de cerca de 800 pessoas. É a maior concentração da doença já registrada pela comunidade científica.

Fenômeno com concentração semelhante à de Goiás ocorre em uma comunidade indígena da Guatemala. A maior diferença desses doentes da América Central é que eles não vivem mais de 10 anos. Os de Araras conseguem chegar à fase adulta, mesmo sendo corroídos pelo câncer ao longo do tempo. O grupo goiano tem pacientes de 8 a 80 anos. Esse fator leva os cientistas a imaginar que se trata de uma mutação leve, agravada por fatores ambientais, como a alta incidência solar.

Sem assistência


Por morar em uma região quente, com temperaturas entre 20ºC a 35ºC, não ter aposentadoria, instrução, dinheiro e acompanhamento médico ideal, os doentes de Araras passam a maior parte da vida expostos ao sol, pois sobrevivem da agricultura e pecuária. Com a retirada dos tumores, acabam mutilados. Após a denúncia do Correio, os governos municipal, estadual e federal prometeram apurar o caso e garantir o atendimento médico gratuito aos pacientes, cidadãos de baixa renda e de pouca instrução. Os representantes dos órgãos assumiram desconhecer o problema, até a publicação das reportagens.

No entanto, somente quatro meses depois autoridades goianas começaram a tomar as primeiras providências para assistir os 21 moradores do vilarejo portadores do mal raro e mortal. Por iniciativa do Ministério Público estadual, representantes da área de saúde de Goiás organizaram uma força-tarefa para atender os doentes. Desde então, unidos em uma associação, a Apoderma, que reúne 30 doentes — inclusive de outros estados —, os pacientes de Araras têm conseguido maior atenção do Estado. A demora, no entanto, agravou o estado de boa parte do grupo.

Nos primeiros meses após as reportagens do Correio, a Secretaria de Saúde de Goiás resistia em dar mais atenção aos doentes de Araras. Afirmava não poder fazer nada além das consultas e cirurgias para retirada de tumores dos pacientes. Negava até distribuição gratuita de protetor solar. Sob pressão do Ministério Público, o órgão criou um ambulatório só para os portadores de xeroderma, no HGG.

Em função das reportagens do Correio, os doentes de Araras passaram a ser estudados pelo Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), o maior do país nesse segmento. O geneticista Carlos Frederico Martins Menck, da USP, visitou a comunidade de Araras em março do ano passado. Considerado o principal estudioso de xeroderma pigmentoso no Brasil— pesquisa a doença desde 1976 —, ele mediu a radiação solar nas casas do povoado e coletou material para biópsia em seis pacientes. Desde então, tem feito o mapeamento do gene defeituoso que provoca a doença, em seu laboratório da USP. Por ter origem genética, o xeroderma não tem cura, mas há como frear o desenvolvimento da doença, revertendo o gene defeituoso das próximas gerações. “A mutação genética da família de Araras deve estar identificada até o meio deste ano”, acredita Menck.

PARA SABER MAIS


O que é

O xeroderma pigmentoso é uma doença hereditária caracterizada pela deficiência na capacidade de reverter (ou consertar) determinados danos no DNA (material genético), em especial aqueles provocados pela luz ultravioleta, presente na radiação solar.

Os sinais

Lesões cutâneas estão presentes nos primeiros anos de vida evoluindo de forma lenta e progressiva e estão diretamente relacionadas à exposição solar. Aos 18 meses, metade dos indivíduos afetados apresentam alguma lesão cutânea nas áreas de exposição solar, aos 4 anos, cerca de 75%, e aos 15, 95%.

Os primeiros sinais clínicos iniciam-se em forma de eritema (vermelhidão da pele produzida pela congestão dos capilares), descamação, hiperpigmentação difusa e lesões cutâneas semelhantes a sardas.

Os doentes

- Por ser uma doença recessiva, o xeroderma é mais comum entre nascidos de casamentos consanguíneos — em que o risco de duas pessoas terem o mesmo erro genético é maior.

- O xeroderma pigmentoso apresenta grande heterogeneidade genética, ou seja, diferentes famílias podem apresentar o mesmo quadro clínico, que pode ser causado por mutações em genes diferentes.
- A doença afeta ambos os sexos, apresentando maior prevalência nas populações com elevada taxa de consanguinidade, como japoneses, árabes e judeus.

- Nos EUA e Europa, a frequência é de um caso para cada 250 mil indivíduos e no Japão é de um caso para cada 40 mil indivíduos.

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