Mudança Eletricista preso ao roubar carne para o filho vive nova rotina Depois de ser flagrado roubando num supermercado e ter a fiança paga pelos policiais, Mário Lima trabalha como operário e convive com a desconfiança alheia

Por: Rafael Campos - Correio Braziliense

Publicado em: 19/06/2015 10:46 Atualizado em:


“Sorri para a foto, Friboi”, gritam os colegas de trabalho do eletricista Mário Ferreira Lima, em alusão ao crime cometido por ele há pouco mais de um mês. Agora empregado, o homem preso ao roubar 7kg de carne de um supermercado e que teve a fiança paga por agentes da 20ª Delegacia de Polícia (Gama Oeste) (leia Memória), vive uma rotina na qual existem duas realidades opostas. Enquanto aguarda o desfecho jurídico do inquérito, colhe os benefícios de ter saído de uma situação de miséria, mas sem escapar do julgamento moral decorrente do crime que cometeu e que será analisado pelos tribunais.

Em poucos dias, Mário enfrentou uma montanha-russa particular, que alcançou dimensão inimaginável. Mais de um 1,5 milhão de pessoas foram alcançadas pela notícia apenas por meio da página do Correio no Facebook. Flagrado como ladrão, Mário passou à condição de pobre coitado, virou celebridade, ganhou emprego e voltou a ser massacrado nas redes sociais quando vieram à tona outras três acusações de crimes semelhantes. Ele não fala sobre antecedentes, nega que seja um ladrão contumaz.

Parte importante dessa história, os policiais que decidiram fazer a vaquinha para livrá-lo da cadeia e que não tinham conhecimento de outros registros de ocorrência deixam claro que em nenhum momento o pagamento da fiança tinha a intenção de isentá-lo do crime. “Ele ainda vai ser convocado pela Justiça para responder pelo delito. O que vimos foi uma necessidade física, dele e do filho. Naquele momento, a nossa intenção era exclusivamente suprir uma carência, sem qualquer intenção de eximi-lo”, salienta um dos agentes que participaram da história, Francisco Sena. Apesar disso, ele admite que ficou desapontado quando soube das acusações anteriores ao caso do mercado de Santa Maria. “Eu, sinceramente, espero que esse rapaz tenha alcançado o objetivo de ter o seu emprego e, se ele tinha essa prática corriqueira, que tenha mudado de vida e pense em ter um futuro diferente.”

De fato, o ato de boa vontade dos policiais deu a ele uma nova chance. Em um país no qual a taxa de reincidência criminal chega a 70%, Mário teve sorte de ganhar um emprego formal. “Acordo às 6h e faço o café da manhã e o almoço do meu filho. Às 7h, estou pronto para trabalhar e vou dormir, no máximo, às 21h. O corpo tem de descansar para aguentar.” Até ser julgado, ele segue dando um sorriso amarelo sempre que o grito de Friboi ecoa pela obra onde trabalha atualmente. O estigma não chega a ser uma pena severa diante de sua nova condição.

Dignidade
Ele confessa que, após a repercussão do caso, recebeu tantas doações que teve de repassar algumas para instituições de caridade. Garante que a solidariedade veio até de outros países e que a quantidade de mantimentos que recebeu daria para abastecer sua despensa até o fim do ano. “A minha vida mudou totalmente, ainda mais depois do emprego. Tendo essa oportunidade e recebendo salário e vale-transporte, estou recuperando a minha dignidade para conseguir sustentar o meu filho”, comemora Mário.

A satisfação dele é visível, mas hoje, longe de despertar a comoção de antes, ainda causa desconfiança. Ednaldo Belém Silva, gerente do supermercado de onde o eletricista furtou a carne, acredita que Mário acabou levando vantagem com toda a situação. “Já vieram me dizer que ele fazia isso há muito tempo, que iria vender a carne que roubou no supermercado. Parece que ele está feliz depois de ter feito o que fez. Espero que esse trabalho, pelo menos, faça com que ele veja o que estava errado na sua vida.”

Ressocialização 
Mário vive uma situação inusitada. Goza de um privilégio raro até mesmo para quem já cumpriu pena. Ganhou o direito de ressocialização antes mesmo de ser julgado e de ter pago a sua dívida com a sociedade. A declaração do dono da construtora que lhe ofereceu emprego é prova disso. “Se a pessoa está recuperada, por que não fazer isso? Claro que vai depender do crime que foi cometido, mas, no caso dele, não vi problema nenhum em oferecer o trabalho”, diz Merdan Gois.

Se não tivesse sido beneficiado com o pagamento da fiança, Mário engrossaria a estatística do Conselho Nacional de Justiça, segundo a qual 42% da população carcerária no Brasil são de presos provisórios. “O Brasil é um dos países mais violentos do mundo e isso faz com que a tendência do Judiciário seja a do encarceramento. É uma forma de dar uma resposta à sociedade”, explica a vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no DF, Indira Quaresma. Mas, na prática, o que se vê é que, em muitos casos, aquele preso sai e comete novamente crimes, só que mais graves. “A prisão brutaliza aquele indivíduo, que fica livre, sem que exista uma rede de apoio que o faça conseguir ser reinserido”, afirma Indira.

Ela acredita que, além da tentativa de mostrar serviço, o Judiciário mantém o padrão de prisões também pela falta de capacidade de acompanhar a execução de penas alternativas. Isso pode ser um dos motivos para justificar o fato do Brasil ter a quarta maior população carcerária do mundo, com 600 mil detentos. Do total, 14.291 estão no Distrito Federal, uma das 16 unidades da Federação que dispõem de iniciativa para reintegrar ex-detentos ao mercado — a Lei nº 4.079/2008 garante a reserva de 2% de vagas para presos em regime semiaberto e egressos do sistema penitenciário por empresas que vencem licitações na administração pública do DF, exceto em serviços de segurança.
O governo local mantém a Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso do DF (Funap/DF), que desenvolve programas de capacitação educacional e profissional. O diretor adjunto da instituição, Paulo Fernando Melo da Costa, explica que os trabalhos são desenvolvidos nos complexos penitenciários, em cursos de panificação, serigrafia, costura, marcenaria, serralheria, informática e oficina mecânica. Mesmo assim, apenas três em cada 100 presos têm a chance de uma capacitação profissional. “Infelizmente, por força da legislação atual, a Funap não tem amparo legal para acompanhar os detentos que cumpriram a pena”, esclarece.

O caso
Em 13 de maio, o eletricista Mário Ferreira Lima foi flagrado ao tentar furtar 7kg de carne em um supermercado em Santa Maria. Foi preso em flagrante, mas a polícia se comoveu com a história dele. Depois de contar sobre as dificuldade da vida dele e os agentes confirmarem a situação de miséria na casa do suspeito, os policiais pagaram a fiança e fizeram compras para a família.

Mário havia sido demitido quando precisou ficar oito meses com a mulher, após uma cirurgia. Desde então, sustenta um filho de 12 anos com o benefício que recebe mensalmente do programa Bolsa Família. À época do crime, ele alegou que o dinheiro não havia sido depositado na conta; por isso, tentou roubar a carne. Mas acabou flagrado pelo dono do estabelecimento, que chamou a polícia.


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