A"tragédia das crenças comuns" e a racionalidade na política

Maurício Rands
* Advogado formado pela FDR da UFPE, PhD pela Universidade Oxford

Publicado em: 10/06/2019 03:00 Atualizado em: 10/06/2019 08:39

A polarização da política atual amplifica preconceitos, estereótipos, falácias, dogmas, fatos alternativos e clichês. O que tem colocado em dúvida a nossa capacidade de realizar a ambição do triunfo da razão, tão caro ao Iluminismo. Os riscos das decisões irracionais ganham um novo aliado com os algoritmos usados nas redes sociais. Eles impulsionam nossa exposição aos preconceitos da nossa tribo. Eivados de ideologia, damos likes e compartilhamos posts que expressam nossas identidades. Fôssemos um pouco mais rigorosos, facilmente identificaríamos as fragilidades da ideia que estamos a ratificar. Quem de nós já não nos surpreendemos replicando opiniões insubsistentes ao menor escrutínio racional? Atire a primeira pedra quem não replicou uma fake news. Provavelmente porque ela ‘confirmava’ alguma crença ideológica do grupo a que pertencemos. Seja porque isso nos traz um sentimento de que ‘estamos fazendo algo para mudar a situação’. Seja pelo viés ideológico (fatos ou ideias que confirmam nossos devaneios ideológicos). Seja pelo desejo de pertencimento a uma tribo. Para os influenciadores digitais, e mesmo para os experts da academia e da mídia, um outro apelo pode ser ainda mais forte. Vão conquistar audiência se chamarem a atenção com o inusitado, absurdo, horroroso, sensacional, ou de fácil apelo. Mesmo que falseiem a realidade e as leis da lógica que vêm de Aristóteles.

Vargas Llosa, em seu último livro (2018) lança um brado heróico contra o comportamento de tribo. O prof. Dan Kahan, da Universidade Yale, em seus estudos de psicologia cognitiva, tem investigado como as deliberações nas democracias podem combinar as crenças das pessoas com políticas públicas racionais. Em seu livro The Tragedy of Belief Commons, ele fala de uma tragédia segundo a qual as pessoas tendem a moldar suas condutas pelas crenças da sua tribo. Pela necessidade de expressar suas identidades. Pelo afã de aceitação. De acreditar que não estão sozinhas em seu incômodo ante a realidade atroz. Por isso, elas ficam sujeitas ao viés, ao bias. Conservadores são seletivos em tudo que realce as tradições e as instituições tal como elas foram herdadas de ‘um passado glorioso’. Progressistas tendem a acreditar em tudo que combata a velha ordem e seja percebido como capaz de alavancar as mudanças, sejam econômicas, sociais ou ambientais. Esses desvios são racionais no plano individual porque baseiam-se na necessidade de estima e pertencimento a um grupo social. Mas levam a propostas que podem ser irracionais para o conjunto da sociedade. Essa a ‘tragédia das crenças comuns’, na expressão cunhada por Kahan.

Como evitar que os preconceitos grupais dificultem a adoção de políticas mais racionais para o conjunto da sociedade? Políticas que transcendam as percepções e interesses setoriais. O desafio é longo. Mas começa por identificar as causas da irracionalidade. Como fazem Vargas Llosa e Dan Kahan nessas reflexões recentes. Mesmo com todos esses riscos e incentivos perversos, não deveríamos desistir do debate racional na esfera pública. Se é que queremos a melhoria da vida no planeta. E, como lembra Steven Pinker, em seu Enlightnenment Now (2018), não podemos sucumbir à tentação de combater a demagogia com mais demagogia. O populismo, acrescento, com mais populismo em sentido contrário. Esses desvios da racionalidade humana não significam a negação da nossa capacidade de usá-la.

Identificado o problema, o desafio passa por reinventar a participação democrática para que o debate público seja mais racional. Por revolucionar a educação e elevar o nível educacional e científico das pessoas. Por modificar o funcionamento das instituições, combinando mecanismos da democracia direta com os da representativa. Mas também por políticas públicas que combatam a pobreza e a desigualdade, que são campos férteis para o apelo irracional dos populistas, sejam de que naipe.

Como nos lembra Pinker, “uma abordagem mais racional da política é tratar a sociedade como um experimento em andamento e com a mente aberta, aprender com as melhores práticas, venham elas de que lado do espectro ideológico. As evidências empíricas sugerem que as pessoas florescem mais em ambientes de liberdade de mercado, investimentos sociais e regulação bem informada.” Se o Iluminismo estiver certo na crença sobre o triunfo da razão, é de se esperar (e trabalhar para) que as deliberações na esfera pública e a governança sejam tratadas mais como experimentos científicos e menos como expressões de torcidas de futebol. Afinal, a advertência de Voltaire de que os “preconceitos são a razão dos tolos” não parece tão atual?

Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.