Gilberto e Lecticia: doces, cultura e memória

Luzilá Gonçalves Ferreira
Doutora em Letras pela Universidade de Paris VII e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 07/05/2019 03:00 Atualizado em: 07/05/2019 08:34

Quem lá não esteve, não sabe o que perdeu. Foi sábado passado, como parte do Curso Transfigurações de Memória organizado pela Academia Pernambucana de Letras, que os 80 anos de publicação do livro Assucar (assim mesmo, com dois S) foram comemorados em grande estilo. Grande em todos os sentidos, desde a recuperação por Maria Lecticia Monteiro Cavalcanti, da história do açúcar, da cana de açúcar, sua trajetória desde a Ásia até chegar em Pernambuco, o reencontro com os textos de Gilberto Freyre, com os quadros e desenhos de artistas nossos como Cícero Dias, Aluisio Magalhães, com a poesia de Mauro Mota lembrando a presença da sacarose em nossas veias nordestinas, com a obra de um menino de engenho chamado José Lins do Rego, de um João Cabral que descobriu no movimento do canavial uma “geórgica de cordel”. Tudo isso magistralmente pesquisado e apresentado com a segurança de quem tem se mostrado autoridade no assunto, com um “saber de experiência feito”, mas sem perder, digamos, a doçura. Autoridade igualmente comprovada no convite que lhe fez a Global Editora para fazer a apresentação do livro de Gilberto para a recente reedição de Assucar. Maria Lecticia, recebida na APL com 37 votos - eram 38 os votantes - por muitos anos colaboradora na Revista Continente, com ensaios sobre gastronomia (que é também uma linguagem, segundo afirma), tornou-se especialista em pesquisar, comentar e estudar referências culinárias na obra do mestre de Apipucos: catalogou mais de 1.300 citações em livros de Gilberto,  resultando daí o livro Gilberto Freyre e as Aventuras do Paladar, segundo o jornalista Bruno Albertim “um fluente e caudaloso livro”. Ainda nesse sentido, Maria Lecticia publicou História dos sabores pernambucanos e Esses pratos maravilhosos e seus nomes esquisitos. Em sua palestra de sábado – sem texto escrito e com apenas um pequeno roteiro servindo de orientação – Maria Lecticia lembrou, inclusive, suas experiências com a arte da doçaria, experiências visuais, olfativas, gustativas que permanecem em nossas memórias nordestinas, como o cheiro da goiabada cozinhando em tachos de cobre, as crianças aguardando o momento de lamber os restos do doce, ainda quente, a lembrança de mães, avós, tias, de velhas amas quase membros da família, guardiãs de receitas e do segredo de saber “o ponto” do açúcar, da compota, o jeito de misturar a massa, de bater as claras “para não desonerar” como dizia minha mãe. A  palestra de Maria Lecticia não foi apenas uma ocasião de se aprender, de se refletir sobre nossa memória cultural, sobre a riqueza e originalidade de nossa culinária, especializada em coisas doces, noblesse oblige, por conta do açúcar que fez nossa riqueza, nosso cotidiano, nossa história. Mas ainda, e deixei para o final desta crônica, o que foi a chave de ouro da tarde: a mesa de doces nordestinos oferecida ao público que lotou a sala Frei Caneca, desde os bolos mais refinados como o Luiz Felipe, como o Bolo de Rolo, o Souza Leão, até as cocadas com leite, as queimadas e as branquinhas, lembrando pudim de tapioca. Que nos fizeram esquecer taxas de glicose e outras mazelas. Que nos deixaram de bem com a vida, e nos prepararam para a palestra seguinte, a de José Paulo Cavalcanti, que será assunto de nossa Opinião da próxima semana. Até lá. 

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