Truques de linguagem

Fanuel Paes Barreto
Professor de Língua Portuguesa e Linguística/Unicap

Publicado em: 05/01/2019 03:00 Atualizado em: 05/01/2019 21:45

Em palestra na Universidade Harvard, de uma série proferida entre os anos de 1967 e 1968, o poeta argentino Jorge Luís Borges, discorrendo sobre os “truques” da literatura, ponderou que uma ideia sugerida é, de longe, mais eficaz do que uma ideia posta em palavras. O poeta buscou explicação para esse enigma na suposição de que talvez a mente humana abrigue a tendência de negar o que é afirmado de modo explícito, já o meramente insinuado encontra “certa hospitalidade em nossa imaginação”.

Por coincidência, também no ano de 1967, na mesma universidade, realizou-se outra série de palestras em que se considerou, no essencial, o mesmo fenômeno, embora sob uma perspectiva diferente. Nessa ocasião, o filósofo inglês Paul Grice procurou analisar o mecanismo envolvido nas insinuações e sugestões que os participantes de uma conversa fazem e compreendem sem dificuldade. Chamou de “implicaturas” os significados expressos indiretamente, que vão além das palavras. Propôs a hipótese de que, ao interpretarmos a fala, levamos em conta não só a forma como se dizem as coisas, mas também o contexto em que são ditas e alguns princípios que governam a ação de dizê-las.

Entre esses princípios, encontram-se certas expectativas inerentes ao ato conversacional: esperamos do que se diz que seja dito com sinceridade, que tenha relevância etc. Contudo, muitas vezes, parte do significado resulta da quebra intencional de uma ou mais dessas expectativas, ou “máximas”, como chamou o filósofo. Quando ironizamos, por exemplo, dizemos, em geral, algo evidentemente falso (“Você, sempre pontual!”, ao repreendermos o reiterado atraso de alguém). Entretanto, nesses casos, o ouvinte não parece encontrar maior dificuldade em concluir que o propósito do falante não foi incidir em uma mentira tão óbvia, mas sugerir exatamente o contrário do que disseram suas palavras. Se correta a análise de Grice, a conclusão (ou “inferência”) do ouvinte em questão apresenta uma base racional – corresponde a um raciocínio, um “cálculo”, cujas etapas o filósofo tentou descrever. O importante para Grice era que, por essa via, nosso discurso diário se revela uma forma de comportamento humano na qual mesmo um gesto aparentemente contraditório envolve uma lógica passível de ser desvendada.

Entre as máximas conversacionais, está a de que devemos ser breves em nosso dizer, evitar a prolixidade. Portanto, para se justificar, o uso da repetição ou da redundância demanda, em geral, uma interpretação mais compreensiva por parte do ouvinte para a decisão do falante de recorrer a tais expedientes. É interessante que, na referida palestra, Borges tenha aplicado o princípio intuitivamente, ao interpretar os versos do poeta americano Robert Frost, aqui em livre tradução: “O bosque é belo, fundo e sombrio,/ Mas tenho promessas a cumprir/ E milhas a vencer antes de dormir,/ E milhas a vencer antes de dormir.” De acordo com Borges, o emprego da repetição nos faz sentir que, no último verso, “milha” tem um valor temporal e “dormir” significa “morrer” ou “descansar”; ainda segundo ele, se o poeta escolhesse dar uma forma mais precisa às mesmas ideias, obteria como resultado um verso bem menos eficaz – o recurso à repetição foi a sutil estratégia usada por Frost para suscitar o vínculo metafórico, tão comum na fala diária, entre as noções de dormir e morrer.

Assim, o poeta argentino parece ter dado conta de algo que o filósofo inglês não procurou responder diretamente: o porquê de usarmos tais sutilezas de linguagem. De fato, no âmbito dos modernos estudos da pragmática linguística, o conceito de otimização da eficiência discursiva vem oferecendo uma importante chave para se entender o emprego dessas estratégias verbais, não apenas no palco da arte literária, mas, principalmente, na arena da comunicação diária. Certa vez, indagado se Chico Buarque era seu filho, Sergio Buarque de Holanda respondeu: “Não, o Chico não é meu filho, eu é que sou pai dele.” Na resposta bem-humorada do renomado historiador, a evidente contradição serve para sugerir uma mudança de status entre pai e filho, provocada pela então crescente fama do cantor. Difícil pensar em um truque mais eficaz.

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