Violência escolar: Normalização de discurso de ódio e descontrole de redes sociais impactam", diz especialista
Contextos de violência escolar e proteção de alunos voltaram a ser debatidos após o caso de Alícia Valentina, de 11 anos, que morreu após ser espancada por colegas dentro da escola onde estudava em Belém do São Francisco, no Sertão de Pernambuco
O caso da garota de 11 anos que morreu no domingo (7), após ser espancada dentro da escola municipal onde estudava, em Belém do São Francisco, no Sertão de Pernambuco, levantou o debate sobre a violência escolar.
O cenário é marcado por um aumento nos últimos anos, principalmente entre 2022 e 2023. Ao menos 47 pessoas morreram em decorrência desse tipo de violência desde 2001, segundo a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
O Diario conversou com a Professora Flávia Vivaldi, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Moral (Gepem). A docente explicou que são inúmeros os fatores que contribuem para a crescente da violência escolar.
“Os fatores que impactam o aumento da violência escolar estão ligados à dinâmica de aumento da violência na sociedade como um todo. Se nós temos a normalização de discursos de ódio, polarização, o funcionamento descontrolado das redes sociais, tudo impacta. Como esse mundo virtual é muitas vezes uma terra de ninguém, então o reforçamento dessa violência que é vivenciada nesses espaços, pela intolerância, pelas desinformações, isso tudo gera impacto no aumento da violência escolar. As violências estruturais também impactam muito”, diz a professora.
O que é violência escolar?
Segundo Flávia, a violência escolar pode ser dividida em três perspectivas. Violência na escola, violência da escola e violência à (ou contra) escola.
“A violência na escola são os episódios mesmo de agressões físicas, bullying, e todo e qualquer tipo de violência, inclusive as estruturais, que trazem muitas vezes o reflexo das violências que ocorrem na sociedade. A violência da escola, mais simbólica, diz respeito a dinâmica estabelecida pela própria escola, mas que em andamento pode potencializar as violências na escola”, explica.
“Por último, tem a violência a escola ou contra a escola. São os episódios em que a violência invade e ataca a instituição ou as pessoas que representam essa instituição. Professores, estudantes, equipe gestora, como os ataques protagonizados por estudantes, ex-estudantes. Casos de tiroteios nas comunidades que obrigam muitas vezes a escola suspender, as aulas, tráficos, movimentos de tráficos no entorno da escola”, acrescenta.
A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), classifica a violência escolar como um conjunto de violência física, psicológica, violência sexual e o bullying, é praticada e vivenciada por estudantes, professores e outros funcionários da escola. Ainda de acordo com a Instituição, um bilhão de crianças no mundo todo experienciam algum tipo de violência escolar todos os anos.
Os casos de violência atendidos em serviços públicos e privados de saúde são de notificação obrigatória no Sistema de Informação de Agravo de Notificação - Sinan, do Sistema Único de Saúde (SUS). Apenas em 2023, foram registradas 13.117 vítimas de violência interpessoal nas escolas em todo o Brasil. Entre 2013 e 2023, foi registrado o total de 60.985 vítimas de violência interpessoal nas escolas.
O Ministério da Educação (MEC) classifica quatro categorias principais de violência que afetam a comunidade escolar: Agressões extremas, com ataques premeditados e letais, violência interpessoal, com hostilidades e discriminação entre alunos e professores;
bullying, quando ocorrem intimidações físicas, verbais ou psicológicas repetitivas, e
episódios no entorno escolar.
Segundo Flávia, a subnotificação é um ponto-chave também para a manutenção da violência escolar.
“Quando não se identifica, dentre os problemas de convivência, aqueles que tem de fato natureza violenta, se trata tudo do mesmo jeito e às vezes o tratamento que se dá para esses problemas de convivência é inofensivo, se resolve pontualmente, momentaneamente uma situação, mas sem atuar nas causas, só nos sintomas. Fatores de subnotificação tão atrelados a isso, a não identificação dos diferentes problemas de convivência que podem existir numa escola”, relata.
Combate
Para a Professora Flávia, a principal forma de enfrentar a violência escolar é planejar a convivência.
“O enfrentamento da violência na escola se dá por um planejamento da convivência, enquanto a convivência for algo que é percebido pela escola somente quando tem problema, e não um uma dimensão que precisa ser planejada de forma intencional, de tal forma que a gente não fique só apagando incêndios, mas que a gente trabalhe numa maneira preventiva”, argumenta.
“Se não houver um trabalho intencional por parte das instituições sobre a convivência, fica pouco provável da gente conseguir enfrentar esses fenômenos de violência escolar. Porque muitas vezes a instituição não consegue nem identificar as violências que acontecem lá dentro, exatamente pelos processos de naturalização que ocorrem nas relações”, ela complementa.
Ação estadual
Questionada pelo Diario de Pernambuco, a Secretaria de Educação e Esportes de Pernambuco (SEE-PE), informou que atua de forma “permanente e estruturada, através do projeto EntreLaços, na promoção de saúde mental e na intervenção, prevenção e enfrentamento das múltiplas manifestações de violência no ambiente escolar, incluindo o bullying”
No Estado, o trabalho de combate ao bullying nas escolas é orientado a partir de legislações específicas, como:
A Lei Estadual n.º 13.995/2009, que dispõe sobre a inclusão de medidas de conscientização, prevenção, diagnose e combate ao bullying escolar no projeto pedagógico das escolas;
A Lei Estadual nº 18.532/2024, que institui o Marco Legal de Enfrentamento à Violência nas Escolas e a Política Estadual de Enfrentamento à Violência nas Escolas;
Além das leis federais n.º 13.185/2015, de instituição de garantias de ações de combate ao bullying, e n.º 14.811/2024, de criminalização da prática.
Em nota, a Secretaria também informou que realiza a implementação do "Protocolo de Enfrentamento ao Bullying", desenvolvido pelo programa Escola que Protege, do Ministério da Educação (MEC).
Lei
O Diario procurou a Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), e apurou que existem em tramitação dois projetos de lei que trabalham aspectos relacionados ao tema da violência escolar.
- PL 1972/2024: A fim de prever, nos estabelecimentos de ensino da rede pública estadual, a prioridade de transferência de matrícula aos alunos que sofreram bullying ou cyberbullying; estabelecer penalidades para os agressores; incluir o combate ao cyberbullying; e assegurar o acesso aos serviços públicos de assistência às vítimas e aos agressores.
- PL 426/2023: Dispõe sobre os meios de prevenção, conscientização e coibição da prática de cyberbullying nos órgãos e entidades da administração pública direta e indireta do Estado de Pernambuco e dá outras providências.
Caso Alícia Valentina
O caso de Alícia Valentina chocou o Brasil. A garota foi agredida na quinta (4), por colegas de escola. Segundo relatos, ela levou um empurrão, caiu e bateu a cabeça, na Escola Municipal Tia Zita, em Belém de São Francisco, no Sertão de Pernambuco.
Em estado grave, ela teve que ser transferida para o Hospital da Restauração (HR), na área central do Recife, onde morreu no domingo (7).
Ainda segundo informações, o crime teria sido cometido depois que a garota se negou a ”ficar” com um colega, que queria ter um relacionamento com ela.
Por meio de nota, enviada ao Diario nesta quarta (10), o MPPE informou que tomou conhecimento do caso e foi informado pela Secretaria Municipal de Educação e Procuradoria do Município.
“Diante dos fatos, a Promotoria de Justiça de Belém de São Francisco instaurou Procedimento Administrativo para acompanhar o caso.
Para isso, expediu ofícios à Polícia Civil determinando a instauração de inquérito policial para apurar o caso, bem como ao CREAS e à prefeitura, solicitando informações sobre os fatos”, disse a nota do MPPE.
Ainda não foi informado se os responsáveis pela agressão foram identificados e o que vai acontecer com eles. Caso sejam menores de idade, os envolvidos poderão ser enquadrados como infratores e receber medida socioeducativa de até três anos.