Dos tipos às telas: 200 anos de tecnologias e vanguarda
Já experiente na impressão e na técnica desenvolvida por Gutenberg algumas centenas de anos antes, Antonino resolveu fundar o Diario de Pernambuco como um jornal de anúncios para facilitar a vida das 26 mil pessoas que circulavam no Recife à época
Publicado: 07/11/2025 às 00:54
Prédio do DP no final do século 19 (REPRODUÇÂO)
Até 7 de novembro de 1825, faltava nesta cidade “assaz populosa” um jornal. A partir dali e ao longo desses 200 anos, o jornal mais antigo em circulação na América Latina passou por tantas mudanças quanto o país e estado que o abrigam, alterando também a forma como as informações partiam dos repórteres e chegavam aos leitores.
É impossível escrever sobre as tecnologias da época sem abordar os fatos e o clima pelo qual Pernambuco, Brasil e até o mundo passavam, até porque o nosso estado não passava exatamente pela mais tranquila das épocas. Fazendo uma rápida cadeia de eventos, no começo daquele ano, Frei Caneca havia sido executado por conspirar contra a coroa durante a Confederação do Equador que, por sua vez, teve como principal voz outro jornal, o Typhis Pernambucano, onde trabalhava um ex-professor que havia acabado de deixar a tipografia nacional: Antonino José de Miranda Falcão.
Já experiente na impressão e na técnica desenvolvida por Gutenberg algumas centenas de anos antes, Antonino resolveu fundar o Diario de Pernambuco como um jornal de anúncios para facilitar a vida das 26 mil pessoas que circulavam no Recife à época. Assim, diretamente da tipografia de Miranda e Companhia, na Rua Direita nº 267, bairro de São José, um papel de 24,5 x 19 cm foi impresso fazendo uso de um prelo, ferramenta que deu início a esta história.
O prelo usado naquela primeira edição era rudimentar, parecido com o criado por Gutemberg, como diz Arnaldo Jambo em História e Jornal de Quinze Décadas. Segundo o autor, impressões mais tecnológicas já existiam, mais avançadas que a de Antonino, que usava tipos - letrinhas - móveis de chumbo dispostos manualmente em duas colunas de texto em peças de madeira, formando uma espécie de quebra cabeças de letras que eram prensadas e impressas no papel. Fora o trabalho de montagem, que se fazia página por página, ainda tinha que se fazer a vista, revista e a limpeza do excesso de tinta, que borrava tanto o papel quanto seus criadores.
Não se sabe exatamente como foram os aprimoramentos utilizados, mas supõe-se que o primeiro prelo ainda passou uns bons anos sendo utilizado, apenas recebendo avanços pontuais que deixassem a impressão mais prática, até porque, desde o começo, a ideia de Antonino era de ter um jornal diário - apenas com uma pausa aos domingos. Desse modo, as quatro folhas com cerca de 329 linhas e 1.400 palavras entre anúncios de vendas, compras e serviços eram impressas a todo vapor para serem vendidas por 40 réis (ou dois vinténs, como era conhecida a moeda na época) em pontos específicos da cidade, como o Botequim da Praça (Santo Antônio), na Loja da Gazeta (Rua do Rosário) e na Botica de João Ferreira da Cunha, no Largo da Matriz (Boa Vista).
Fazendo justiça ao primeiro prelo, é importante situar seu final feliz. A trajetória do objeto não é completamente confirmada pelos pesquisadores, mas sabe-se que ele foi adquirido por volta de 1880 por Manuel do Rio Jordão Chagas, cidadão que teria sido dono de outro jornal no estado. Em 1925, ano do centenário do Diario, o prelo foi doado pelo mesmo Manuel ao Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP).
"Para o Instituto Arqueológico, é uma grande honra e uma grande responsabilidade conservar essa peça tão simbólica, tão representativa, tão especial para a nossa história. O Diario é, por si só, uma testemunha e um guardião que registra os fatos acontecidos em Pernambuco há 200 anos, então é um diálogo perfeito entre a história do ponto de vista do objeto material e também a história como narrativa do nosso passado conservado ali", pontua o presidente do instituto, George Cabral.
PINHEIRO & FARIA
Os aprimoramentos permitiram que o prelo continuasse a ser o meio de impressão utilizado até quanto o jornal passou à responsabilidade do também dono de tipografia Manuel Figueiroa de Faria, em 1835. Dono da Pinheiro & Faria, Figueiroa tinha em comum com Antonino a fome por inovação, que tomou conta do jornal e foi a grande marca da sua administração.
Na década seguinte, Figueiroa já estava focado no seu objetivo de tornar o Diario uma vanguarda do jornalismo nacional e equipará-lo às produções da corte, no Rio de Janeiro. Como explica Jambo, “foi o período em que ele se entregou inteiramente ao aprimoramento da imagem gráfica do jornal. Ampliou-lhe as dimensões, aumentou-lhe os noticiários, tornou bela e limpa a impressão”, além dos novos ideais editoriais, como a maior presença de assuntos internacionais, culturais e científicos, trazidos também com novidades visuais, sendo a principal delas a gravura - conhecida na época como clichê - consolidando o jornal como uma empresa gráfico-editorial.
Toda essa ascensão consideravelmente rápida permitiu que o já bem abastado Figueiroa ampliasse seu acervo tipográfico e se reequipasse mecanicamente. Próspero mesmo antes de comandar o Diario, o empresário mantinha uma rotina de viagens internacionais e buscava melhoramentos e incentivos europeus para melhorar suas máquinas e funcionários. Tanto que em 1855, em um relatório do governador José Bento da Cunha e Figueiredo, o ‘parque gráfico’ de Figueroa, tido como mais procurado do Recife por comerciantes e entidades oficiais - nesta época, o Diario veiculava os Atos Oficiais do governo do estado, o que trazia uma renda considerável -, foi descrito como “uma grande mecânica” e possuía ‘seis prelos de ferro que imprimem diversas obras menores; 150 pares de caixetas de tipos e ocupa diariamente 72 pessoas’.
O acervo mecânico do jornal só iria mudar dali a alguns anos, com o falecimento do primeiro Figueiroa, em 1866. Diferentemente do pai, Manuel (filho), Miguel e Filipe não obtiveram o mesmo sucesso à frente do jornal, mesmo sendo os responsáveis por trazer uma nova máquina para as impressões: a Marinoni.
A nova ferramenta tinha capacidade para imprimir quatro páginas simultaneamente, mesmo que a montagem das páginas ainda fosse feita de forma manual. Porém, agora os textos eram gravados em placas de metal por meio de uma linotipo, que era um equipamento que fundia o chumbo para compor as linhas, maquinário até então inédito no estado.
A nova máquina vinha para compensar a má fase pela qual o Diario passava. Apesar de terem boa relação com o governo e trazerem novidades editoriais como a presença de agências de notícia entre o material local e internacional, o final da dinastia Figueiroa chegou na virada do século, em 1901. Em março, o jornal parou de circular, só voltando em abril, após ser comprado em um leilão - ao valor de 52 contos de réis - pelo vice-presidente da República, o conselheiro Francisco de Assis Rosa e Silva.
ROSA E SILVA
O comando de Rosa e Silva durou pouco, mas foi nele que ocorreu um dos episódios mais marcantes da história do Diario, que influi diretamente no tema desta reportagem. O então vice-presidente da novíssima República brasileira, usando de sua estabelecida influência na política do país, tratou de renovar por completo as máquinas da redação, o parque gráfico, a qualidade da imagem e o corpo redatorial do jornal. Naquela época, a gráfica do Diario já era corpulenta e contava com diversos maquinários e funcionários, cada vez mais especializados na arte da tipografia e na impressão dos clichês.
Porém, foi o que levou Rosa e Silva ao topo que representou sua queda: a política. De lados opostos, ele e o general Dantas Barreto, então ministro da Guerra, se posicionaram como principais candidatos ao governo de Pernambuco após questões de saúde fazerem Herculano Bandeira renunciar.
Usando o jornal como palanque, na época em que outros veículos se posicionaram em peso contra o Marechal Hermes da Fonseca, presidente do Brasil de queml Rosa e Silva era vice, o “rosismo” trouxe inimigos não só para si, mas para os negócios. Após o resultado das eleições de 1911, que deram vitória a Rosa e Silva, os “dantistas” inconformados apedrejaram a sede do Diario, rasgaram a edição de aniversário em ato público e, finalmente, entraram nas oficinas, empastelaram* as máquinas e destruíram praticamente tudo que havia no parque gráfico.
Pela primeira vez, o Diario tinha recebido danos materiais e violentos. Ainda por cima, a pressão do poder militar provocou uma recontagem dos votos, o que pôs Dantas Barreto no governo. Assim, ele usou a cadeira para tentar calar o jornal de vez. Até que em fevereiro de 1912, sob o governo do general, o Diario foi novamente empastelado e, suas dependências, brutalizadas. O historiador Luís do Nascimento, em História da Imprensa de Pernambuco, transcreveu uma edição do “Jornal do Recife” da época, que descreveu que “os estragos foram quase completos”. “Excetuando as máquinas, uma das quais, a ‘Marinoni’, tinha as fitas cortadas, e a seção de avulsos, que estava intacta, tudo mais foi inutilizado. Retratos, espelhos, estantes e outros móveis, aparelho telefônico, lâmpadas, livros em grande quantidade, jornais e outros objetos foram estragados e postos em desordem. As caixas de tipos foram viradas, achando-se todas espalhadas na sala de composição”. Dessa forma, a edição de 23 de fevereiro de 1912 seria a última daquele ano.
A VOLTA DO DIARIO
O Diario só veria a paz novamente em 1913, sob novo comando: o do empresário rural Carlos Benigno Pereira de Lira. Sem querer se meter com a política pernambucana - muito menos a nacional -, Carlos Lira assumiu com a proposta de modernizar o jornal quase centenário, que dali a frente só tinha como objetivo oferecer informação aos seus leitores. Permitida pela prosperidade do usineiro e pelo respeito que seus negócios anteriores traziam, o Diario foi logo reformado, visando deixar para trás a época violenta e conturbada.
Para adaptar sua nova oficina, o novo dono eletrificou o prédio totalmente, que o permitiu atualizar os linotipos e, principalmente, substituir as velhas Marinoni por uma moderna rotoplana da Duplex Printing Press Co, importada de Michigan, nos Estados Unidos. A nova impressora recebia as ramas criadas pela junção do trabalho dos tipógrafos, clicheristas e do paginador, que juntava tudo, e imprimia os milhares de cadernos, que já saíam dobrados.
Os novos equipamentos se tornaram símbolo da esperança que tomou o Diario, que voltou a ser publicado em 1º de janeiro de 1914. O jornal voltava para um formato menor, mas, devido a nova impressora, podia trazer mais recursos gráficos. Essa foi a época do surgimento das fotos no Diario, justamente quando os leitores estavam ávidos pelas notícias da Primeira Guerra Mundial. A evolução trazida por Carlos Lira foi tanta que, em 1918, a oficina já contava com três impressoras eletrificadas “Duplex”, novos modelos de composição e moldes modeladores de chumbo, sendo considerada pelo jornalista Aníbal Fernandes “a mais moderna equipagem do jornalismo brasileiro”.
“Devemos incontestavelmente à família Lira a restauração do Diario depois do desmonte do Conselheiro Rosa e Silva”, escreveu. “Sem a sua interferência, naquela hora, talvez tivesse ido parar no martelo do leiloeiro; ou como melancolicamente acabou o ‘Jornal do Recife, e, como este, o ‘Jornal Pequeno’ e mais tarde a ‘Província’”, que, à época, eram prestigiosos e já tradicionais jornais do estado que não resistiram ao tempo.
DIARIO NO DIÁRIOS
O sucesso atraiu um velho conhecido do Diario dos tempos de Rosa e Silva. Após a administração do jornal passar pelas mãos também seguras de Carlos Lira Filho, a prosperidade do veículo fez um ex-repórter da casa e então superintendente dos Diários Associados (DA) adquirir o velho jornal em 1931. Era a vez de Assis Chateaubriand, sobrevivente dos empastelamentos do Diario.
“O mais lindo patrimônio de Pernambuco”. Foi assim que Chatô se referiu ao DP ao comunicar sua incorporação aos DA. Seu principal objetivo era o de integrar o Diario à sua rede de veículos de comunicação, então ele tratou de logo criar uma rede entre os repórteres do sul com a equipe do prestigiado Diario. Nessa época, o foco foi em quantidade, multiplicando as seções do jornal para adaptá-lo como um dos maiores destaques dos Associados, o que significava mais pessoal tanto na redação, quanto na tipografia, que viria a ser finalmente aposentada algumas décadas depois.
A arte que sustentou o jornalismo mundial por mais de 100 anos com seus tipos e tintas de chumbo foi finalmente aposentada na década de 70, com a chegada das impressoras off-set. Agora, os linotipos e o chumbo não eram mais necessários, já que o processo da composição passou a ser feito eletronicamente. Dessa forma, a informatização do Diario começou por sua gráfica, que recebia os textos das máquinas de escrever da redação, que duraram até os anos 90.
Ennio Benning, jornalista, ex-editor de política e economia do Diario e estudioso da imprensa pernambucana, explica como era o processo praticado no jornal na chegada do off-set. “Você apurava, depois escrevia na máquina de escrever com carbono entre as páginas. Esse material era diagramado pelo diagramador, que fazia as marcações, juntava todas as páginas, as matérias, as fotos e mandava para a parte industrial. Esse material era todo redigitado no computador e partia para a gráfica”, explica.
“Foi um período muito rico”, continua Benning. “O Diario, eu digo a todo mundo, é o maior patrimônio histórico que Pernambuco tem, porque ao longo da existência desses 200 anos, você viu centenas de jornais passando pelo Recife. O jornal era rede social, era por onde as pessoas se informavam e por onde as pessoas faziam política”.
PERNAMBUCO.COM
Foi uma época de mudanças rápidas. O desenvolvimento das novas tecnologias, como a informática e internet, deixava tudo mais rápido e trazia novidades em todas as faces do jornal. Ao mesmo tempo, o jornalismo físico e virtual se desenvolviam ao passo que, em 2000, foi lançado o Pernambuco.com, primeiro portal do Diario de Pernambuco na web. Também nessa época foram realizadas reformas gráficas no jornal impresso, com o objetivo de ocupar o espaço de vanguarda que o Diario sempre ocupou e espelhar a modernização de dentro da redação.
Christiano Mascaro, ex-editor de artes, comandante dessa reformulação gráfica, conta que a mudança foi gradual, mas de bastante impacto na forma que os leitores consumiam as notícias no papel. “O principal objetivo do jornal era espelhar essa modernização que ele vinha passando. Era tornar evidente essa transformação do produto e fazer uso do jornalismo visual. Fazer utilização de uma apresentação da notícia mais visual, que ela trouxesse maior engajamento de leitura e atendesse a um outro público. A gente passou a ser um jornal que reconhecidamente que tinha apresentação da notícia, um visual mais arrojado”.
A mudança estava acontecendo na edição toda, mas o ponto alto era, com certeza, a Primeira Página. “A ‘capa’ servia como um pôster do que estava sendo proposto naquela edição. Era sempre muito destaque, havia ‘capas’ que ‘viralizavam’ demais. Espontaneamente elas ‘viralizavam’”, afirmou o artista, lembrando com carinho do adeus a João Paulo II, em 2005, que rendeu ao Diario o primeiro prêmio da organização Society of News Design.
DP PARA O MUNDO
Em 2011 veio o portal definitivo do Diario, alimentado todo o tempo com notícias locais, nacionais e internacionais, colunas, artigos, análises e tudo que o melhor do jornalismo digital pode oferecer. Dois anos depois, vieram as redes sociais, um meio de acelerar ainda mais e ampliar a presença do jornalismo no mundo digital.
Hoje, os três formatos se encontram, conversam e se completam, unidos no objetivo de trazer a informação rápida e com a credibilidade de um jornal bicentenário, como afirma o Diretor de Redação do Diario, Ricardo Novelino: “O grande desafio é trazer a matéria apurada, bem feita e o mais rápido possível. Se a gente der uma informação que está confirmada em uma linha, a gente vai publicar em uma linha no portal. Nas redes, vai fazer com um vídeo rápido e preciso. No impresso é sempre refletir o que foi o dia, tem que ser uma curadoria do que aconteceu o dia inteiro. O que fizemos de melhor vai estar na edição. Esse é o grande desafio de equilibrar uma coisa com a outra. É o que a gente faz todo dia”.
Ah, e por via de curiosidade e para fechar esta reportagem, hoje a impressão do Diario de Pernambuco começa em um arquivo PDF, de onde é criada uma matriz de impressão colorida, que é colocada em uma impressora rotativa, alimentada com bobinas de papel jornal. A frente e o verso das folhas já são impressos simultaneamente, com o caderno já dobrado na saída da impressora, prontos para serem intercalados, embalados e entregues para os assinantes. É o Diario que, hoje, chega até você.