Milícias

José Paulo Cavalcanti Filho
Jurista e membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 08/06/2018 03:00 Atualizado em: 08/06/2018 08:36

(Lisboa). A presença das milícias, no Rio, vem de muito tempo. Lembro cliente que teve furtado um Santana Quantum, no início dos anos 1980. A 24ª DP de Belfort Roxo localizou o carro. E o próprio delegado ligou, pedindo para providenciar logo sua remoção. Que, ficasse na delegacia uma noite, e o lugar amanheceria limpo. Ocorre que o motorista do cliente só poderia ir lá na manhã seguinte. Liguei para o secretário de Justiça, Vivaldo Barbosa. Pouco depois, retornou. “Mandei pôr na vaga do próprio delegado. Fique tranquilo que, amanhã, o carro lá estará”. Estava. Mas sem os quatro pneus! Sem o motor!! Na vaga do delegado!!! E o carro dentro da delegacia!!!!, como é que pode? O poder das milícias era mesmo devastador. Ainda é. Cada vez maior.

A memória segue. Quando estávamos no Ministério da Justiça (1985/6), decidimos fazer uma experiência. A de juntar, em um mesmo espaço, todos os serviços de cidadania – carteira de identidade, de trabalho e de motorista, título de eleitor, por aí (deu tão certo que, depois, até os estados copiaram). Escolhemos, como local de teste, um morro do Rio. Pedi para comprar terreno e fazer projeto de arquitetura. Problema é que as milícias decretaram, no tal morro, que tudo era deles. Teriam que autorizar a construção. Não a prefeitura. Eles. Sugeri negociar. Perguntaram só se havia polícia no meio. Dissemos que não. E o terreno nos foi doado.

Outro exemplo. Com o Conselho de Comunicação Social, do Congresso Nacional – que é tentativa de criar, por aqui, uma Federal Communication Commission. Estávamos estudando as televisões por assinaturas, no início dos anos 1990. O preço era então alto, para o consumidor médio. Sugerimos fosse reduzido. As empresas disseram que dependia do fim da evasão. Que usuários demais não pagavam. Só nos morros do Rio, a estimativa é que houvesse um milhão de gatonets (gato na internet, mais um neologismo que ficou). Controlado pelas milícias. Junto com distribuição de água mineral e gás. E com polícia dentro, claro. Não dá para fazer isso sem a polícia, que tem o dever de fiscalizar e prender os responsáveis. Hoje, até shopping de etiquetas falsas exploram na Presidente Vargas. E escritórios para venda de drogas, em cada imóvel ocupado por sem tetos (O Globo).

A notícia de milícias envolvidas no assassinato de Marielle e Anderson, por tudo, não causa nenhuma surpresa. Elas já fazem parte da geografia do Rio. São tentaculares. Não se sabia é que tivessem exportado seu modo de operação por outros estados. Como Pernambuco. E São Paulo. Agora, nos vem a notícia de que o Movimento Moradia para Todos (MMPT) atuava como uma milícia. Cobrando aluguéis dos sem tetos. A coordenadora do Movimento, “Ednalva Franco, era filiada ao PT-SP desde 1990 e atuava como ativista sem-teto” (Folha SP). Trata-se da mesma que pouco antes, num episódio do Profissão Repórter, foi vista dirigindo um SUV novinho em folha. Moradores do Edifício Nilton Paes de Almeida, que desabou pelo fogo, relataram que pagavam entre 200 e 600 reais para ter direito a lá ficar. E se queixaram da truculência da milícia com os devedores, expulsos dos seus espaços em plena madrugada.

É como se houvesse dois países, em convivência instável. Um por dentro do outro. O Brasil Oficial, que é o nosso. E o Informal, onde não existem casamentos, nem separações, inventários, em alguns casos nem mesmo direito de propriedade. E onde o Código Civil não vigora. É neste último espaço que as milícias reinam, soberanas. Recordo mestre Câmara Cascudo (Presença): “O Brasil não tem problemas, tem apenas soluções adiadas”. Até quando? Quanto mais longe irão?, até que se decida fazer algo.

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