Uma casa e suas dádivas

Marcus Prado
Jornalista

Publicado em: 24/04/2018 03:00 Atualizado em: 24/04/2018 09:12

Estive várias vezes no sobrado de Júlia da Silva Bruhn (1851-1923), remanescente do Engenho Boa Vista, nos arredores da cidade colonial de Paraty (RJ), onde viveu a mãe do Nobel de Literatura, Júlia, conhecida na Alemanha como “matriarca de uma dinastia de escritores”. Poucos sabem em Paraty que foi nesse velho sobrado e seus misteriosos desígnios que começou uma das mais belas sagas de uma família de origem brasileira, ao ponto de inspirar livros, filmes, peças de teatro, nome de Rua em Lübbeck, na Alemanha. Conhecida por ser a mãe de dois dos maiores escritores do século 20, Thomas e Heinrich Mann e avó de outros vultos nos campos da cultura e das artes, Júlia foi a musa inspiradora das obras de Heinrich e Thomas: a personagem Gerda Arnoldsen, em Buddenbrock, a Senadora Rodde, em Doutor Fausto, a Mãe Consuelo, em Tônio Kröger e, finalmente, a mãe de Gustav Von Aschenbach, principal protagonista de Morte em Veneza.

Nos meios culturais de Lübeck sabia-se que a mãe brasileira estava no centro da vocação literária dos filhos. Foi ela quem pagou de seu próprio bolso a edição dos primeiros livros dos filhos Thomas e Heinrich. Por onde passava, nas viagens, visitava as livrarias para saber como iam as vendas. Cito palavras de Paulo Astor Soeth, grande estudioso da obra de Thomas Mann, no posfácio à recente edição de A Montanha Mágica: “(...) o atual presidente da Sociedade Alemã Thomas Mann, Hans WiBkirchen, disse certa vez que os Mann representam para a Alemanha o que os Kennedy representam para os Estados Unidos. (...) o que os Windsor representam para a Inglaterra”. A influência materna foi marcante na formação literária dos jovens Thomas e Heinrich Mann. Frido, o bisneto de Júlia, disse que: “Sem esta influência, Heinrich provavelmente não teria escrito seu mais famoso romance Zwischen den Rassen, em cujas páginas ele descreve a vida de sua mãe em terras brasileiras.

A primeira vez que estive na casa de Júlia Mann fui levado pela divina Maria Della Costa, famosa atriz do teatro e do cinema, de quem me tornei amigo, sendo hóspede, mais de uma vez, da sua Pousada Cochicho no centro histórico de Paraty. Eu vi a casa cercada de marinas luxuosas, uma delas, do famoso navegador Amir Klink, atual proprietário da casa de Júlia. Estava em péssimo estado de conservação: telhado invadido pelo mato, paredes agredidas pelo mofo, madeirame de sustentação apodrecido, cipós infiltrando-se pelas frestas. Quando voltei, há cerca de dois anos, tudo ali era um amontoado de papeis, coisas inúteis, velhas cortinas soltas no chão, até castiçais que o vento arrastava à toa, a erosão trêmula e evasiva do abandono. (O único som que se ouvia vinha das ondas do mar e de um pássaro ao fundo de uma frincha solitária).

Foi de Maria Della Costa, a mulher mais bela da cidade e a que mais amou como ninguém Paraty, que ouvi dizer sobre o desejo de Nikolaus Gelpke, amigo alemão da família Mann, em instalar naquela casa um ambiente para escritores do mundo todo.  “Mas isso não aconteceu, embora tivesse o aval de Frido Mann, bisneto de Julia”. Thomas Mann no seu tempo de menino cresceu ouvindo histórias da casa mais brasileira de Paraty. As centenas de escritos sobre Júlia Mann e sua casa no litoral fluminense parecem nos convencer de que havia se fixado naquele recinto amoroso um deus protetor e de boa linhagem, um deus que estava arraigado ao seu solo.  

Em Esparta, quem não preservava as tradições de família e sua casa, mesmo involuntariamente, deixava logo de ser contado entre o número de cidadãos até ao lustro seguinte. As tradições dos hindus, dos gregos e dos etruscos davam à moradia original o sopro inspirador da família. Cada casa tinha o seu deus. O cidadão nunca devia abandonar o seu berço, onde a sua divindade se havia fixado. Mas os deuses malvados de Esparta não perdoaram a família Mann e seus descendentes. Na Alemanha, Júlia, o Nobel Thomas Mann, seu irmão também famoso, Heinrich Mann (Prêmio Goethe de Literatura), e seus filhos viveram como emigrantes na própria terra, quando não exilados. Júlia, nos seus últimos anos de vida, não passava um ano sequer na mesma casa, e suas últimas palavras no leito de morte foram lembranças dos dias felizes da casa-grande de Paraty, da cor dos poentes que nos seus olhos ardia, a energia que emanava daquele paraíso perdido, cercado de cana de açúcar de um lado (o verde aroma do canavial) e do outro pelas espumas do mar, o infinito ir e vir das ondas frias.

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