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CRÍTICA

No espinhoso 'Depois da Caçada', ninguém escapa da teia de hipocrisias

Julia Roberts, Ayo Edebiri e Andrew Garfield estrelam 'Depois da Caçada', thriller de Luca Guadagnino ('Me Chame pelo Seu Nome' e 'Rivais'), que já está em cartaz nos cinemas do Recife

Andre Guerra

Publicado: 21/10/2025 às 14:19

Julia Roberts se vê em complexo dilema entre aluna protegida e colega de docência/Courtesy of Amazon MGM Studios

Julia Roberts se vê em complexo dilema entre aluna protegida e colega de docência (Courtesy of Amazon MGM Studios)

A professora de filosofia Alma Imhoff (vivida por Julia Roberts) está prestes a ser promovida a um dos mais altos cargos da Universidade de Yale quando um escândalo recai sobre seus ombros. Após um jantar social em sua casa, uma aluna prodígio, Maggie (Ayo Edebiri, da série The Bear), vai embora acompanhada pelo extrovertido professor Hank (Andrew Garfield). No dia seguinte, a jovem não aparece na aula e surge assustada, à noite, na residência de sua mentora, a quem conta ter sido sexualmente abusada pelo docente e pede apoio para formalizar uma acusação.

Já em cartaz nos cinemas do Recife, Depois da Caçada, dirigido por Luca Guadagnino (de Me Chame pelo Seu Nome, Até os Ossos e Rivais), é cínico e provocador desde seus créditos iniciais, que emulam a música e a tipografia dos longas de Woody Allen (reconhecidamente cancelado pela indústria hollywoodiana durante a era Me Too por conta de acusações de abuso sexual). E não para por aí: o humor cortante, as cores em tons de bege e a hiper-racionalidade do texto também remetem ao diretor de dezenas de clássicos, como Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Crimes e Pecados e Match Point.

Colocando a protagonista em um intrincado dilema, ao mesmo tempo que seu conturbado passado ameaça vir à tona, o roteiro assinado por Nora Garrett também não facilita para a plateia. No lugar de uma talvez esperada abordagem educativa, a autora do argumento — em total sintonia com o realizador italiano — prefere o caminho da fagulha. Depois da Caçada não é uma história de agressor versus vítima, tampouco um mistério policial em que a grande verdade será revelada no desfecho.

É um movimento arriscado, nos dias de hoje, em que quase tudo necessita de explicações e funcionalidades, abraçar a amoralidade dos personagens como fazem Garrett e Guadagnino. Todos são incansavelmente falhos aqui: Hank (culpado ou inocente — e o filme jamais esconde seu posicionamento nesse particular) é agressivo e cheio de subterfúgios para justificar suas atitudes; Maggie, uma das alunas mais ricas da universidade, é mimada e calculista; e Kim, a psiquiatra vivida por Chloë Sevigny, quebra acordos de confidencialidade com seus pacientes.

Interpretada por Julia Roberts com um misto de elegância, instabilidade e ferocidade que há muito tempo não se via na atriz (vencedora do Oscar de 2001 por Erin Brockovich – Uma Mulher de Talento), Alma é, ela própria, uma teia de complicações. Desde um casamento amigável, mas cheio de lacunas e comodismos, com o psicólogo Frederik (Michael Stuhlbarg), passando pela relação pouco profissional que mantém com Hank, até o uso nada ortodoxo de medicações, a professora é o que geralmente se considera, na ficção, uma narradora não confiável — e, por isso, tão fascinante de decifrar.

Depois da Caçada é mais sóbrio e contido do que os trabalhos tipicamente voluptuosos de Guadagnino, mas não deixa de apresentar estilizações bastante evidentes — da trilha sonora estridente à movimentação de câmera cheia de insinuações. Essa linguagem mais fria, natural ao universo elitista retratado por ele, poderia tornar tudo remoto demais ou desprovido da humanidade que está no centro da história. Mas o diretor concilia, de maneira surpreendente, a polidez desse suspense de relações pessoais com seus rostos e gestos marcantes.

Parece, o tempo todo, que alguém está prestes a fazer algo gritante. Nesse sentido, o filme lembra Segredos de um Escândalo — se fosse ambientado no cenário de A Rede Social, de David Fincher. A cena inicial, com os personagens no sofá, é um dos melhores momentos do ano do ponto de vista do estabelecimento de personagem, situação e conflito.

Mais interessado nas faíscas do problema do que nas suas soluções, Depois da Caçada é uma raridade nessa era em que dramas adultos estão cada vez mais relegados ao espaço das séries. Só pela coragem de abraçar uma ambiguidade tão espinhosa e fugir de qualquer pedagogia, já merecia um lugar de destaque na produção comercial contemporânea.

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