Ícone do teatro pernambucano, Marlene se presenteou com café da manhã em seu último ato
Um mês antes de morrer de câncer, Marlene decidiu presentear a si mesma com uma cesta de café da manhã, com direito a fotos e mensagem. Ela era conhecida por ser uma assídua frequentadora de teatros
Publicado: 03/06/2025 às 18:28

Marlene e o café da manhã de aniversário de 64 anos. (Foto: Cortesia)
Era manhã de quarta-feira quando a cesta de café da manhã chegou, em sua casa em Água Fria, no Recife. Em meio a tratamento de câncer, Marlene recebeu uma grande bandeja de aniversário, com vaso de flores vermelhas naturais. No interior, croissants, pães de queijo, frutas secas, sanduíches, torradas e iogurtes, além de uma foto sua abraçada com a cachorra Frida.
Acompanhava o presente um bilhete, escrito pela própria Marlene. "Me presenteei com essa cesta de café da manhã. Mandei para mim porque mereço. Eu não dou para outros? Por que não me dar também, né?”, dizia a mensagem.
Marlene Coutinho resolveu se presentear em 9 de abril, seu aniversário de 64 anos. Usou peruca, vestido de cetim e joias para comemorar. Ela tratava um câncer de ovário com sete metástases, alcançando útero, bexiga, intestino e baço.
O ato de amor próprio chamou a atenção da empresária Rebeca Ângelis, do Cestou, responsável pelo café da manhã Marlene. "A gente aprendeu a vida toda que presente é só pros outros, mas se presentear também é uma forma de amor-próprio", avalia. "Ela pediu um cartão que ela mesma havia escrito para si e a gente também escreveu um cartão especial dizendo o quanto ela já era especial pra gente", recorda-se.
Teatro
No dia 12 de maio, um após o Dia das Mães, Marlene morreu. Quem lembra as proximidade das datas é a nutricionista Elany Ferreira, nora de Marlene. “Eu lembro disso porque estava grávida e vivendo meu último dia das mães com ela, que me tratava como filha”, diz.
Marlene costumava ir ao teatro toda semana. Há quem acredite que ela foi a pessoa que mais assistiu a espetáculos no Brasil. Carregava nas costas a tatuagem das máscaras da tragédia e da comédia. “Não vou morrer de câncer. Vou morrer atropelada por um ônibus no caminho ao teatro”, ela disse mais de uma vez.
Em 16 de dezembro de 2017, o Diario de Pernambuco contou a história da mulher, destacando como ela era uma personagem indissociável do teatro pernambucano.
"Assistiu a praticamente todas as peças em cartaz, incentiva artistas do estado e ajuda a manter vivo o amor pelas artes cênicas", conta o texto. “Não tenho talento, nem vocação. Meu lugar é na plateia”, contou Marlene à época sobre nunca ter atuado.
Na sede do grupo O Poste, no Centro do Recife, há uma placa em homenagem a ela. "O Grupo O Poste homenageia a espectadora mais assídua e fiel do Teatro Pernambucano", diz.
"Ela sempre esteve com a gente. Ela era a primeira a chegar em todos os trabalhos. Acho que a partir de 2012 ela começou a frequentar todas as ações do espaço", diz o diretor do Grupo O Poste, Samuel Santos.
Vitória
Marlene teve dois filhos, três netos e criava oito gatos e uma cachorra. Descobriu um câncer de ovário silencioso em 2021 quando procurou o hospital por ter a Doença de Wilson, condição hereditária rara, que contribuiu para o agravamento de sua debilitação. “Ela foi a que menos sofreu com o diagnóstico. Nunca ouvi minha sogra reclamar”, lembra Elany.
Após passar por uma série de intervenções, o câncer entrou em remissão em 2023. “Ela sempre gostava de fazer festa. Aí ela organizou uma e nomeou ‘festa do ressignificado’”, conta a nora. O câncer, entretanto, voltou em 2024, e os tratamentos anteriores não deram resposta desta vez.
“No Dia das Mães ela externou que estava cansada e não aguentava mais. Foi a primeira vez durante todo esse período que ela disse algo do tipo. Queria ver as amigas, pediu para ver o filho que mora em São Paulo”. Marlene morreu na tarde do dia seguinte.
Na mensagem que pediu para ser impressa com a cesta, Marlene dizia que queria envelhecer com "audácia, atitudes, atrevimento, despudor, coragem, ousadia, sem-vergonhice e muito amor à vida".
"Estou viva e muito confiante, bem resolvida e feliz. Os tumores e as metástases que lutem!", escreveu. "Serei sempre: Existência, insistência e resistência".
"Ela sempre foi muito positiva e sempre teve certeza que iria vencer o câncer. E venceu, né? Porque ela nunca se entregou", diz a nora.

