Garças do Capibaribe enfrentam riscos em um dos rios mais poluídos do Recife
Estudos apontam presença de metais pesados e outros contaminantes no rio, capazes de afetar a cadeia alimentar e a saúde das aves que fazem parte da paisagem urbana da capital pernambucana
Publicado: 29/12/2025 às 06:00
Garça divide espaço com o lixo acumulado às margens do Capibaribe. (Foto: Crysli Viana/DP Foto)
De plumagem branca contrastando com as cores do Recife, as garças estão sempre presentes para quem passa pelas margens do Rio Capibaribe, em locais como o Cais de Santa Rita, o Paço Alfândega e a Rua da Aurora. Silenciosas, pousadas em árvores, postes ou à espera de peixes rasos, essas aves aquáticas estão ameaçadas pela água poluída do Capibaribe, que pode representar um risco à saúde destes animais.
A equipe do Diario de Pernambuco visitou alguns pontos na área central do Recife por onde as garças costumam se alimentar e buscar abrigo para dormir, como no bairro de Santo Antônio, entre as pontes Maurício de Nassau e Giratória. O cenário encontrado foi de acúmulo de lixo nas margens do rio. O pouco mangue existente no local estava contaminado com plástico, pneus, roupas e calçados velhos descartados de forma irregular.
Os voos das garças eram certeiros para a vegetação do mangue no pôr do sol, que já indicava a hora do recolhimento. Enquanto se preparavam para dormir, andavam sobre os lixos e tentavam se equilibrar entre os galhos.
“O principal poluente que poderia afetar essas garças são os plásticos, incluindo também os microplásticos. O plástico polui, atrapalha, é residual, mas é visível. Já o microplástico pode ser ingerido quando a ave vai pescar um peixe na água ou se alimentar, já que o alimento também pode estar contaminado”, explica Severino Mendes, doutor em Ecologia, mestre em Oceanografia Biológica e professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE).
De acordo com ele, o consumo de animais e água contaminados por microplásticos pode prejudicar a saúde destas aves. “Os peixes e os moluscos contaminados, que as garças também consomem, podem comprometer, ao longo do tempo, os processos respiratórios e causar complicações cardiovasculares, digestivas e também renais”, detalha.
Estudos científicos conduzidos ao longo das últimas duas décadas indicam que os sedimentos e a água do estuário do Capibaribe acumulam metais pesados e outros contaminantes capazes de afetar organismos aquáticos e, por consequência, aves que ocupam o topo dessa cadeia alimentar.
A qualidade da água do Rio Capibaribe continua em situação preocupante no trecho que corta o Recife. De acordo com o mais recente boletim de monitoramento da Agência Estadual de Meio Ambiente (CPRH), os pontos analisados na capital pernambucana apresentam classificação de “muito poluída”, com alto grau de eutrofização, indicando excesso de nutrientes e forte pressão ambiental.
Uma revisão científica realizada por pesquisadores da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) reuniu dados de aproximadamente 20 anos de monitoramento ambiental no estuário do Capibaribe. O levantamento aponta a presença recorrente de metais pesados como chumbo, cádmio, cromo, cobre, zinco e mercúrio nos sedimentos do rio, especialmente nos trechos mais urbanizados do Recife.
Esses sedimentos, material que se deposita no fundo do rio, funcionam como um reservatório de poluentes. Em ambientes estuarinos, a movimentação das marés, as chuvas e o tráfego de embarcações podem ressuspender esse material, liberando contaminantes novamente para a coluna d’água.
De acordo com os pesquisadores, em vários pontos as concentrações desses metais superam valores de referência internacionais usados para indicar risco à biota aquática. A principal origem está associada ao lançamento histórico de esgoto doméstico sem tratamento, efluentes industriais, águas pluviais contaminadas e resíduos sólidos urbanos.
Além disso, uma dissertação de mestrado defendida na UFPE em 2021 aprofundou a análise ao investigar sedimentos superficiais do Capibaribe em diferentes períodos do ano. O estudo identificou níveis elevados de metais como chumbo, níquel, cromo e zinco, alguns acima dos limites estabelecidos pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (USEPA) para ambientes aquáticos.
A pesquisa chama atenção para a fração mais fina do sedimento, justamente a que mais retém contaminantes e é facilmente ingerida por invertebrados aquáticos. Esses organismos, por sua vez, são consumidos por peixes de pequeno e médio porte, que fazem parte da dieta das garças.
O processo é conhecido como bioacumulação e acontece quando substâncias tóxicas se acumulam progressivamente nos organismos vivos à medida que sobem na cadeia alimentar.
A monografia “Variação espacial em mesoescala da toxicidade do sedimento no estuário do Rio Capibaribe, Recife - Pernambuco” cita que, em bioensaios laboratoriais, cientistas expuseram organismos aquáticos sensíveis, como copépodos e embriões de peixes, a amostras de sedimentos e extratos do rio. Os resultados indicaram efeitos letais e subletais, incluindo mortalidade, alterações no desenvolvimento embrionário e mudanças fisiológicas, como variações na frequência cardíaca.
Esses impactos foram mais intensos nas áreas com maiores concentrações de metais e matéria orgânica contaminada. Para os pesquisadores, os resultados confirmam que a poluição do Capibaribe não é apenas detectável em laboratório, mas biologicamente ativa, com potencial de comprometer a base da cadeia alimentar aquática.
O que isso significa para as garças
Pesquisas com garças e outras aves da família Ardeidae mostram que metais pesados podem se acumular em tecidos, penas e ovos, afetando funções vitais. Entre os efeitos documentados estão a redução do sucesso reprodutivo, alterações hormonais, problemas neurológicos, enfraquecimento do sistema imunológico e aumento da mortalidade de filhotes.
O consumo contínuo de peixes contaminados é a principal via de exposição. Como predadoras de topo, as garças tendem a concentrar poluentes em níveis mais elevados do que os organismos que servem de alimento.
Um trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) também aponta caminhos para o monitoramento dessas aves sem causar danos, uma vez que penas e ovos de garças funcionam como biomonitores eficientes da contaminação ambiental. Parte dos metais acumulados no corpo das aves é excretada para esses tecidos, permitindo estimar o nível de exposição ao longo do tempo.
A presença das garças no Capibaribe também se mostra como uma resistência ao crescimento urbano. “Há cerca de 30 anos para cá, ou um pouco menos, a vegetação do mangue vem se recuperando nas margens do Rio Capibaribe. Isso é algo muito positivo, porque, de alguma forma, esse manguezal serve como abrigo e contribui para reduzir um pouco a poluição ambiental. Além disso, oferece áreas de repouso, de pouso e de reprodução”, pontua o professor da UFRPE.
Manutenção do Rio Capibaribe
Questionada pelo Diario sobre as medidas adotadas para evitar o aumento da poluição no rio, a Secretaria de Meio Ambiente, Sustentabilidade e de Fernando de Noronha informou que “possui representação no Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Capibaribe, participa ativamente das discussões e decisões do colegiado, com outros representantes do poder público, usuários da água (como a indústria e a agricultura) e organizações da sociedade civil”.
A pasta destacou que desenvolve ações de educação ambiental para sensibilizar à população sobre o descarte correto de resíduos e o apoio de ONGs e de ativistas que trabalham pela preservação e defesa do rio.
A Companhia Pernambucana do Meio Ambiente (CPRH) também promove monitoramento hídrico feito por análise da água. Também são promovidas ações de educação ambiental nas escolas.