Orlas do Recife transbordam esforço, dor e resistência de vendedores ambulantes
Sem opções formais de trabalho, muitos iniciam cedo e transformam a praia em fonte de sobrevivência
Publicado: 08/12/2025 às 06:00
Davi Silva, de 43 anos, trabalha como vendedor na praia há duas décadas (Foto: Marina Torres/DP Foto)
A areia ainda estava úmida da chuva da manhã de quinta-feira quando os primeiros vendedores ambulantes começaram a ocupar a orla de Boa Viagem, Zona Sul do Recife. O vento fresco aliviava por instantes, mas o sol logo voltaria a castigar. Com carrinhos pesados, pés afundando na areia fofa, camisas UV coladas ao corpo e a incerteza diária das vendas, os ambulantes se moviam com um sorriso que escondia o cansaço e resistência.
A rotina de quem vive das praias depende do clima, do fluxo de banhistas e da própria disposição física. Vender nestes locais significa enfrentar dias de calor extremo, de chuva contínua e areia fofa. O trabalho não para. O corpo, às vezes, sim. Cada um dos ambulantes que circulam pela orla carrega sua própria história, quase sempre marcada por início precoce, falta de oportunidades formais e a busca contínua por estabilidade. Mas nenhum deles fala em desistir.
Davi Silva, de 43 anos, empurra a carroça de queijo na brasa pela extensão da praia há duas décadas. Atento, com passos firmes apesar das dores no joelho, se mantém sempre de olho nos possíveis clientes. A pressa faz parte da profissão. O tempo, o fluxo e o sol importam. A trajetória na praia não foi linear e Davi começou aos 9 anos, como vendedor de picolé.
Já equipado com a carroça com dezenas de queijos, carvão e fósforo, ele sai quase todos os dias de Brasília Teimosa para trabalhar em Boa Viagem.
“Na época eu vim pra cá porque o desemprego estava grande e a opção que apareceu foi trabalhar na praia. Tenho uma filha agora, novinha, um mês só. A gente tem que ralar mais pra não deixar faltar nada pra ela. Eu acho que vale a pena trabalhar aqui, sim. Faz dez anos que eu não trabalho de carteira assinada. Optei por ficar aqui na praia. Pra mim é até melhor. O clima é outro, é ventilado, chega aquele vento bom”, relata.
Por conta das longas caminhadas na areia desnivelada, desenvolveu um problema de saúde no joelho e passou por cirurgia este ano. Sem tempo para esperar a recuperação total, voltou à praia para trabalhar.
“A areia fofa desgasta demais. Eu tive um rompimento na cartilagem do joelho esquerdo há três anos. Fiz a cirurgia em maio, mas não resolveu e não fiquei 100%. Hoje dói muito ainda e o pé cansa só de andar. Mesmo assim, no mês de agosto eu já tava de volta aqui na praia”, conta.
A poucos metros, no mesmo trecho, está o Mago do Abacaxi, conhecido por muitos frequentadores. Ele fala, empurra o carrinho e vende sorrindo, como se o sorriso fosse também uma forma de resistir. Aos 58 anos, já viveu o interior, as usinas e a vida dura do corte de cana, até fixar os pés na areia.
Para ele não há folga em nenhum dia da semana. Ainda assim, às vezes o abacaxi sobra, bem como as dores do corpo extenuado. “As dificuldades são muitas. À noite, quando chego em casa, está doendo joelho, coluna, tudo. É puxando peso, é areia fofa e a gente chega todo quebrado. Mas nunca precisei ir para médico nenhum”, destaca.
“A rotina para pegar o abacaxi é pesada também. Eu vou pro Ceasa três vezes por semana. E todo dia eu boto meu abacaxi em casa. Todo dia eu carrego, descarrego, lavo meu carrinho. É assim, todo dia. E quando chega a baixa temporada com muita chuva eu venho do mesmo jeito. Venho na chuva, venho no sol. A gente não pode parar”, complementa.
Ele está entre os cerca de mil homens e mulheres que acordam ainda de madrugada, quando a cidade dorme, para preparar a carroça e os produtos de venda. Cada um tem história, investimento, medo de não vender e coragem de tentar outra vez.
O primeiro desafio é sempre o transporte e quem não tem bicicleta vai a pé, quem não tem dinheiro para o ônibus depende da boa vontade de um vizinho ou de uma carona improvável. No caminho, já começam as contas do dia, quanto gastaram, o valor que precisam vender e quanto falta para fechar a semana.
Quando pisam na areia, o trabalho começa de verdade. O calor não espera, a areia esquenta cedo e cada passada parece mais pesada que a anterior. O isopor machuca o ombro, o carrinho emperra nos trechos mais fofos e o sol continua firme.
Muitos vendedores carregam o sonho de não depender de ninguém, de não pesar na família, de comprar suas próprias coisas, de contribuir com a renda de casa. E, no meio do vai e vem da praia, descobrem valores que muitos adultos demoram a entender, como a responsabilidade. Para Denilson Patrício da Costa, de 28 anos, cada caldinho vendido é uma conquista. Cada “não” recebido é uma incentivo para continuar tentando.
Ele destaca que começou aos 14 anos ajudando o irmão e que vender na praia virou alternativa e sustento. Para Denilson, a independência não é luxo e sim uma necessidade. É uma forma de afirmar que, apesar das adversidades, há uma maneira de escrever o próprio caminho.
Diariamente, ele se desloca de ônibus do bairro Curado, a 13 quilômetros da Praia de Boa Viagem, para vender o caldinho que o irmão prepara. “Minha referência foi meu irmão. Ele já vendia aqui e começou a trabalhar sozinho e depois eu me interessei e comecei também. A gente faz o preparo à noite e de manhã termina para poder trazer para praia”, lembra.
O trabalho começa logo cedo e só termina ao final da tarde. Dia de folga é apenas um. “Eu acordo às 6h, faço meu café e saio de casa às 7h. E só saio da praia da entre às 15h e 16h. Trabalho de segunda, e minha folga é na quarta. Trabalho sozinho. O carrinho eu deixo no depósito, porque não dá pra trazer no ônibus. A gente paga 45 reais por semana. É caro, né? Mas precisa. Tem que pagar para manter”, detalha.
Apesar da rotina cansativa, Denilson não pensa em mudar de profissão devido ao peso da liberdade. “É um trabalho puxado, mas compensa. O que eu mais gosto é a rotina, essa independência. A melhor coisa é não estar preso, não estar preso a um trabalho de CLT.”
Há 11 anos, o vendedor André Amaro, de 45 anos, percorre o mesmo trecho da praia de Boa Viagem, no Recife, vendendo protetor solar e bronzeador. Morador de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, ele chega à orla às 8h e atua sempre entre o antigo prédio Holiday e a Padaria Boa Viagem. Trabalha três dias por semana, sextas, sábados e domingos, e encerra as atividades por volta das 13h. No entanto, no dia em que foi entrevistado contou que decidiu ir à praia na quinta-feira para estender as vendas.
Mesmo com a rotina sob sol forte, André afirma que o trabalho vale a pena. “Escolhi viver disso porque gosto. Gosto de trabalhar no meu ritmo, no meu tempo. Trabalhar para mim mesmo me dá liberdade”, afirma.
Ele conta que continua atuando no período chuvoso, apesar da redução das vendas. Não é fácil, não. O sol castiga, às vezes chove, outras vezes a venda é fraca, mas ainda assim vale a pena. No inverno a gente vende muito menos, mas continuo vindo do mesmo jeito. Vendo pouco, mas vendo, e isso já me sustenta”, conta.
André trabalha sozinho e diz que optou pelo comércio na praia pela autonomia. A rotina não inclui outro ponto de venda nem mudança de produto. Segundo ele, o item mais procurado é o protetor, com preços que variam entre R$ 40 e R$ 50.
Sem considerar pontos negativos na atividade, o ambulante afirma que pretende continuar trabalhando na praia, onde construiu a própria rotina e relações comerciais ao longo de mais de uma década.
“Não vejo ponto negativo. Pra mim é só coisa boa: conversar com as pessoas, estar perto do mar, ter meu próprio trabalho. No fim das contas, é um trabalho digno. Vale a pena, e isso é o que importa”, finaliza.