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Mulher trans do Recife ganha na Justiça direito de colocar silicone por plano de saúde: "Não é por estética"

Liminar determinou que Hapvida custeie o procedimento

Jorge Cosme

Publicado: 30/10/2025 às 16:19

Leona Catalina acionou a Justiça para conseguir colocar próteses/Crysli Viana/DP Foto

Leona Catalina acionou a Justiça para conseguir colocar próteses (Crysli Viana/DP Foto)

É um vestido amarelo-claro, de delicados bordados. Longo, de alça, costas nuas e decote em V. Está guardado há dois anos e meio no fundo do guarda-roupa de Leona Catalina.

A supervisora de vendas de 30 anos, moradora do bairro de Afogados, Zona Oeste do Recife, espera a colocação de próteses de silicone para poder finalmente estrear aquela roupa. “Eu já sonhei usando esse vestido. Eu estou ansiosa para usá-lo e me sentir bem”, diz.

Mulher trans, Leona processou o Hapvida após o plano de saúde negar o procedimento. Segundo os advogados de Leona, a operadora alegou se tratar de intervenção meramente estética. Em julho, a Justiça determinou que a instituição realize o procedimento. A cirurgia está prevista para esta sexta-feira (31).

“Não é algo estético. Seria estético para uma mulher cis, que já nasce com peito e, de repente, quer aumentar a mama. Eu não quero aumentar minha mama, eu quero ter uma. É diferente”, diz Leona. "Uma mama faz parte de uma característica secundária feminina. Então eu preciso combinar a minha identificação corporal com a minha mente”.

O processo

Na ação, os advogados de Leona argumentam que ela precisa realizar o implante de próteses mamárias em busca da adequação de sua identidade de gênero e da plena realização de sua personalidade.

Segundo afirmam, a mulher assina o plano de saúde desde setembro de 2022 – "tendo cumprido rigorosamente todas as exigências contratuais, incluindo o período de carência de 24 meses para procedimentos cirúrgicos".

Leona, diz a ação, procurou antecipadamente quais seriam os requisitos necessários para a cobertura da cirurgia de adequação de gênero. A lista de requisitos é extensa: laudos médicos especializados; exames clínicos e laboratoriais; pareceres de cardiologista, endocrinologista, psicólogo e psiquiatra; acompanhamento por cirurgião plástico; além de cumprir o período de carência.

"Após meses de análise, a Requerida negou cobertura ao procedimento sob alegação de que se trataria de 'procedimento estético', demonstrando absoluto desconhecimento da legislação vigente e dos direitos fundamentais da população trans", escrevem os advogados.

Segundo eles, a própria operadora de saúde reconheceu em atendimento presencial que, por se tratar de mulher trans, o procedimento não teria caráter estético. Entretanto, teria mantido o indeferimento em e-mail posterior.

Ao pedirem indenização por danos morais, os advogados da supervisora de vendas avaliaram que houve constrangimento e humilhação, violação à dignidade e identidade de gênero, prejuízo ao desenvolvimento da personalidade, sofrimento psicológico e emocional e violação aos direitos da personalidade.

“Não é capricho estético”

Em decisão interlocutória, a juíza Maria do Rosário Monteiro Pimentel de Souza, da 24ª Vara Cível da Capital, do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), destaca que a controvérsia central reside na natureza do procedimento: se estético, como alega a Hapvida para fins de exclusão de cobertura, ou se terapêutico e reparador.

"A documentação médica acostada é robusta e uníssona em afirmar que a cirurgia pleiteada não constitui um capricho estético, mas sim uma etapa fundamental no tratamento multidisciplinar da disforia de gênero, condição de saúde reconhecida pela comunidade científica internacional", conclui a juíza em decisão de julho deste ano.

Para a magistrada, a recusa da operadora, fundamentada em uma interpretação restritiva do rol de procedimentos e eventos em saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), "parece ignorar a finalidade essencial do contrato de assistência à saúde, que é a de garantir a saúde do beneficiário em seu conceito mais amplo, abarcando o bem-estar físico e psíquico".

"A jurisprudência é clara ao afirmar que o rol da ANS é meramente exemplificativo, não podendo servir de pretexto para a recusa de tratamentos indicados pelo médico assistente como necessários à saúde do paciente", complementa em sua decisão, que deferiu o pedido para determinar que a Hapvida autorize e custeie integralmente o procedimento. Em caso de descumprimento, a operadora deveria pagar uma pena de R$ 1 mil por dia de atraso.

Recurso

A Hapvida impetrou um pedido de efeito suspensivo contra a decisão anterior. A empresa esclarece que autorizou o procedimento cirúrgico em obediência à decisão, mas argumenta que não existe risco irreparável ou dano concreto que necessite da liminar. Para a operadora, não existe previsão contratual ou legal para o custeio do procedimento.

Segundo a defesa do Hapvida, Leona não comprova acompanhamento de dois anos junto ao endocrinologista e não tem laudo emitido por cirurgião plástico. "Registre-se que a mera existência de contrato de plano de saúde não faz obrigatório a assistência integral por parte deste", acrescenta.

Em réplica nos autos, Leona Catalina reitera que a cirurgia pleiteada não é meramente estética, mas parte integrante do processo transexualizador, que seria reconhecido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) e regulamentado pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

"Foram apresentados relatórios multidisciplinares (endocrinologia, psiquiatria, psicologia) comprovando a necessidade terapêutica, em conformidade com as exigências do próprio plano", rebatem os advogados. Eles acrescentam que, mesmo que houvesse lacuna documental, não autorizaria a negativa absoluta da cobertura, mas um pedido de complementação probatória.

Procurada, a assessoria do Hapvida informou que o procedimento de Leona está tendo andamento e que ela já tinha consulta agendada.

Leona, Catalina e a mãe

Embora o Hapvida siga recorrendo na Justiça, a cirurgia já tem data. Leona está empolgada, pois desejava fazer a cirurgia antes do seu aniversário, em 10 de novembro.

Enquanto conta os dias, ela tem lembrado com mais frequência dos gestos escondidos da infância, quando brincava de boneca ou prendia a toalha na cabeça e se imaginava com longos cabelos.

Ainda pequena, disse à mãe que era um menino gay. “Eu imaginava que minha mãe iria dar um longo texto. Mas ela olhou bem nos meus olhos e disse: ‘Eu sei’”, lembra ao Diario de Pernambuco. Entretanto, a aceitação familiar foi mais difícil quando Leona entendeu que era mulher. A mãe se recusava a chamar a filha pelo nome: Leona Catalina.

"A escolha do meu nome de 'Leona' foi uma criação que eu botei como uma forma de feminilizar meu nome antigo, para facilitar para a minha mãe”, diz. "Eu queria o ‘Catalina’, mas não tinha nada a ver com o meu nome antigo. Iria ser difícil para as pessoas porque já estavam com aquele nome na cabeça”.

Segundo Leona, as pessoas do bairro a tratavam com o nome que escolheu. Mas, na presença de sua mãe, a chamavam com um nome masculino. "Foi um perrengue. Eu dizia: 'Mãe, você tem que entender que você tem uma filha. Quando você me chama por um nome masculino, incentiva outras pessoas a não me chamarem pelo meu nome’."

A supervisora de vendas chegou a deixar a casa da família e passar uma semana morando fora. Sua mãe, então, foi até seu encontro pedir que voltasse. Desde então, a relação tem mudado. A mãe, que é costureira e se negava a transformar em tops e blusas as camisetas masculinas da filha, passou a costurá-las em silêncio durante a madrugada.

Há mais de um ano, ela já não chama mais a filha pelo nome morto. "Na primeira vez, ela não me chamou de Leona, me chamou de Catalina. Ela estava ali querendo me chamar da forma mais difícil porque era importante para mim”, afirma. “Eu vi uma mãe que estava se esforçando para se adequar. E hoje eu sei que ela me defende e me protege”.

Agora, a mãe também é a primeira pessoa a repreender as visitas que não chamam a supervisora pelo nome de mulher. E está feliz com a proximidade de uma cirurgia. “Sabe que é um sonho meu”.

 

Aceitação

Segundo Leona, a cirurgia seria uma maneira, ainda, de buscar aceitação. "De certa forma, a gente quer também ser aceita, porque a gente é excluída praticamente desde o nosso nascimento", diz. "Quem é que não quer passar despercebido no meio da rua, viver uma vida normal?"

"Eu tenho certeza que um par de seios vai me ajudar nisso. Eles não são loucos de ver uma mulher, com par de peito, e dizer: 'É ele'. Eu vou dizer: 'Minha gente, como? Qual homem que você conhece que tem um peito desse?'"

Ao mesmo tempo, ela reconhece que o seu processo de se reconhecer como mulher também foi de afronta aos julgamentos.

"Já tinha roupas que eu comprava e deixava no guarda-roupa, mas eu não usava porque não era o momento. Não usava cropped, mas camisa fechadinha, porque o pessoal iria me olhar menos. E daí eu caí na realidade que não. É o mesmo olhar. Independente se eu estou de roupa muito curta, vestido longo, o que for."

"Então eu disse 'se não vou passar despercebida de qualquer forma, então não vou passar despercebida sendo eu. Está na hora de tirar as roupas do guarda-roupa. Se eu quero botar short, vai ser short. Se eu quero saia, então é saia."

Biquínis e o vestido amarelo, no entanto, seguem guardados. "Ainda tenho algumas dificuldades. Sinto a falta do peito", explica. "Eu estou esperando o meu momento para usar essas roupas. E depois de sexta, sei que minha vida vai mudar muito".

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