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Cemitério dos Ingleses: a necrópole que guarda memórias do Recife e ecos do Império Britânico

Mais do que um campo-santo, o local é um marco das relações internacionais e da presença britânica em Pernambuco, guardando nas suas lápides fragmentos de um Recife que se abria ao mundo

Larissa Aguiar

Publicado: 27/10/2025 às 04:30

Cemitério dos Ingleses foi fundado por britânicos que viviam no Recife. Foto: Edvaldo Rodrigues/DP/D.A Press/

Cemitério dos Ingleses foi fundado por britânicos que viviam no Recife. Foto: Edvaldo Rodrigues/DP/D.A Press ()

No coração do bairro de Santo Amaro, entre o vai e vem dos carros na Avenida Cruz Cabugá, um portão de ferro resiste ao tempo e às mudanças da cidade. Por trás dele, o Cemitério dos Ingleses, ou British Cemetery, repousa em silêncio desde 1814, testemunhando mais de dois séculos de história, diplomacia, fé e cultura. Mais do que um campo-santo, o local é um marco das relações internacionais e da presença britânica em Pernambuco, guardando nas suas lápides fragmentos de um Recife que se abria ao mundo.

Raízes de uma presença estrangeira

O início do século XIX foi um período de intensa aproximação entre a Coroa Portuguesa e o Império Britânico. Em meio a tratados comerciais e alianças militares, os ingleses começaram a estabelecer-se com força no Recife, especialmente na região portuária. Eram comerciantes, engenheiros, técnicos e marinheiros — representantes de uma potência que liderava a Primeira Revolução Industrial.

Em 1811, o então governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro recebeu ordens do Príncipe Regente Dom João para atender a uma demanda diplomática: construir um cemitério destinado aos súditos britânicos residentes em Pernambuco. Três anos depois, a doação de um terreno em Santo Amaro das Salinas selou o acordo.

“O cemitério dos ingleses precisa ser compreendido como um projeto político de relações internacionais mais amplo, no que diz respeito não apenas à influência econômica do Império Britânico sobre a Coroa Portuguesa, mas também ao fortalecimento dessas alianças em um contexto de expansão colonial”, explica a historiadora Vanessa Sial.

A área escolhida ficava próxima ao Lazareto de Santo Amaro, onde escravizados recém-chegados da África eram colocados em quarentena. O isolamento geográfico, naquela época, também refletia o afastamento simbólico da morte e das doenças do perímetro urbano, uma preocupação crescente na medicina higienista do século XIX.

Naquele Brasil de religião oficial católica, a morte também tinha fronteiras religiosas. Os ingleses, protestantes anglicanos, não podiam ser sepultados em igrejas católicas. “O cônsul inglês pediu ao príncipe regente que seus cidadãos não fossem enterrados nas praias, o que era visto como indigno. O cemitério surge dessa reivindicação diplomática e humanitária”, afirma Sial.

Com traçado retangular e uma capela neogótica de portas ogivais no centro, o cemitério foi sendo ampliado pela própria comunidade inglesa. A arquitetura revela símbolos de uma época: pilones, obeliscos e ornamentos de ferro fundido, remetendo tanto à estética vitoriana quanto ao domínio tecnológico da metalurgia, o mesmo ferro que movia as máquinas da revolução industrial e, simbolicamente, “protegia os mortos de perigos na existência pós-morte”, como descreve a historiadora.

Abreu e Lima: o excomungado acolhido

Entre os jazigos de estrangeiros e famílias britânicas, destaca-se um nome essencial à história de Pernambuco e da América Latina: José Inácio de Abreu e Lima. O general, que lutou ao lado de Simón Bolívar nas guerras de independência sul-americanas, teve seu sepultamento recusado pela Igreja Católica. Excomungado por defender a liberdade religiosa, encontrou repouso justamente entre aqueles que simbolizavam essa liberdade.

“Na lápide de Abreu e Lima está escrito que sua sepultura eclesiástica foi negada pelo bispo Dom Cardoso Ayres. O acolhimento pelos ingleses não foi apenas um gesto de caridade, mas também um ato político, um símbolo das disputas entre a Igreja e as novas ideias de autonomia e tolerância religiosa”, ressalta Sial.

A presença inglesa em Pernambuco também se materializou nas indústrias locais. Um dos exemplos é a família Star, proprietária da Fundição da Rua da Aurora, responsável por produzir os gradis, portões e peças metálicas que ornamentam o próprio cemitério. O ferro, portanto, é tanto elemento estético quanto testemunho da modernidade que os ingleses ajudaram a implantar.

Curiosamente, a própria historiadora Vanessa Sial tem uma conexão pessoal com o lugar: “Meu tataravô, William Seal, era engenheiro mecânico inglês e veio a Pernambuco para instalar maquinários a vapor nos engenhos. Ele está sepultado no Cemitério dos Ingleses. Quando descobri isso, compreendi que a minha história familiar também faz parte dessa presença inglesa em Pernambuco”, conta.

Com o passar das décadas, o Cemitério dos Ingleses deixou de ser apenas um espaço britânico. Suas lápides revelam um caráter internacional: há inscrições em árabe, hebraico, francês e português, indicando que estrangeiros de diversas origens foram ali sepultados — suíços, judeus, e até brasileiros não católicos.

No século XX, o local ganhou notoriedade quando recebeu a visita da rainha Elizabeth II, em sua passagem pelo Recife. Durante a visita, a monarca determinou que nenhuma alteração estrutural fosse feita que violasse o jazigo de Abreu e Lima, reforçando o valor simbólico do espaço.

Hoje, o cemitério continua de pé, cercado por muros altos e pelo silêncio. Raras são as cerimônias realizadas, e as visitas precisam ser agendadas. A manutenção é garantida com doações da comunidade anglicana local, sem apoio do governo brasileiro nem da Coroa Britânica.

A capela, após anos inativa, abriga novamente uma pequena comunidade da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, mantendo viva a tradição litúrgica e a memória de seus fundadores.

Embora pouco conhecido pelos recifenses, o Cemitério dos Ingleses é uma peça viva da história urbana e cultural da cidade. Seu silêncio guarda memórias de guerra, comércio, fé e ciência e de uma Recife que foi, durante o século XIX, um ponto de encontro entre mundos.

Para Vanessa Sial, preservar o espaço é preservar também a pluralidade da própria história pernambucana:

“O Cemitério dos Ingleses é um espelho de um tempo em que o Recife era uma cidade internacional, portuária, atravessada por fluxos de ideias e de pessoas. Cuidar desse cemitério é cuidar da memória da cidade, é garantir que o passado continue a dialogar com o presente.”

 

 

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