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Vida Urbana
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Pracinha de Boa Viagem: um espelho da história e da alma recifense

Larissa Aguiar

Publicado: 20/10/2025 às 06:30

Concentração será a partir das 9h deste domingo, na Pracinha de Boa Viagem/Francisco Andrade/Secretaria de Turismo

Concentração será a partir das 9h deste domingo, na Pracinha de Boa Viagem (Francisco Andrade/Secretaria de Turismo)

No coração da orla mais famosa do Recife, onde o som das ondas se mistura ao burburinho de feirantes, turistas e moradores, a Pracinha de Boa Viagem pulsa como uma sinopse viva da cidade. É ali, entre a igrejinha azul de Nossa Senhora da Boa Viagem e as barracas coloridas de artesanato, que se contam mais de duzentos anos de transformações urbanas, culturais e afetivas. Um espaço pequeno em extensão, mas imenso em significado, que viu nascer o bairro, o turismo e a própria noção de lazer à beira-mar.

A origem da pracinha remonta ao período colonial, quando o litoral sul do Recife começava a abrigar comunidades pesqueiras vindas de Portugal, especialmente da região de Setúbal. “Esse povoado começa historicamente datado, segundo Fernando Pio, no século XVIII”, explica a historiadora Vanessa Sial. “Antes mesmo da construção da igreja, havia um oratório onde se fazia a devoção mariana à Nossa Senhora dos Navegantes e da Boa Viagem. Era uma relação simbólica e afetiva com o mar, muito forte para aquelas famílias.”

Com o passar das décadas, o povoado cresceu e ganhou importância estratégica. Boa Viagem era ponto de parada obrigatória para quem seguia rumo à Mata Sul. Havia ali uma pequena hospedaria e comércio, mantidos por Baltazar Passos, nome que hoje batiza uma das ruas de Setúbal. A igreja, cuja construção se iniciou em 1707, consolidou-se como centro da vida comunitária e símbolo de fé dos pescadores. “As igrejas coloniais não nascem prontas. Elas vão ganhando forma, incrementos e adornos ao longo dos séculos. E, ao redor delas, se estrutura a vida social: o pátio, as moradias e, mais tarde, a praça”, detalha Sial.

No século XIX, o povoado já estava estabelecido, com a igreja em funcionamento e um conjunto de casas em torno dela. O cenário era bucólico: coqueirais, áreas de restinga e manguezais moldavam a paisagem. A chegada do bonde, no início do século XX, impulsionou a ocupação da orla. “A linha férrea que saía do Porto do Recife e tinha ponto final em Boa Viagem facilitou a chegada de visitantes e mudou o conceito de viver”, observa a historiadora. “Nasce ali o ideal de uma vida saudável à beira-mar, onde os banhos salgados eram considerados terapêuticos.”

A pracinha foi se formando, então, como espaço de convivência e lazer. Durante o século XX, tornou-se um ponto de encontro de famílias, palco de feiras e brincadeiras, e cenário de memórias afetivas de várias gerações. “Antes de ter a cor azul, a igrejinha era amarelinha. Lembro dos passeios de charrete, dos circenses que se apresentavam ali, dos brinquedos populares e dos vendedores de bolinha de sabão. Era um espaço de alegria simples, que reunia moradores e visitantes.” relembra Vanessa Sial.

O tempo passou, e a pracinha se reinventou. A partir da década de 1970, ganhou feirinha de artesanato, tornando-se ponto turístico obrigatório para quem visita o Recife. Nos anos 1990, acompanhando o crescimento do turismo na capital, as barracas se adaptaram ao novo perfil de público. “As antigas barraquinhas de brinquedos e comidas deram lugar a uma feira que hoje expressa a identidade cultural de Pernambuco. As camisetas, ímãs, quadros e rendas trazem símbolos do nosso Estado, das jangadas aos dizeres populares. É uma forma de o visitante levar um pedaço da pernambucanidade para casa”, explica Sial.

O obelisco erguido na pracinha, por sua vez, registra momentos históricos de Pernambuco, como a vitória dos pernambucanos sobre os holandeses, em 1645, e outros episódios cívicos. É o ponto de referência para quem chega, observa e fotografa. Ao redor dele, a vida urbana pulsa em constante movimento.

Nos últimos anos, a Pracinha de Boa Viagem passou por intervenções importantes. Em 2019, a Prefeitura do Recife entregou obras de requalificação, incluindo a modernização da estrutura, a reorganização das barracas e a criação de um novo Centro de Atendimento ao Turista (CAT). Em 2021, um novo aporte do Ministério do Turismo destinou recursos para revitalizações gerais, com reforma dos banheiros públicos, melhoria da iluminação e adaptações de acessibilidade.

Mesmo com as mudanças, o espírito da pracinha permanece o mesmo: um espaço de fé, arte e convivência. Principalmente durante o verão, o espaço se transforma em palco de aulas de frevo, ciranda e coco, num só cenário.

“É um lugar que traduz o DNA do Recife”, define Vanessa Sial. “A pracinha nasceu como ponto de parada, se firmou como espaço de sociabilidade e hoje é um símbolo de permanência. Mesmo diante da verticalização da orla e das mudanças urbanas, ela segue como referência, tanto para os moradores quanto para os visitantes.”

O futuro da Pracinha de Boa Viagem passa, inevitavelmente, pela capacidade da cidade de preservá-la e de reconhecer seu valor simbólico. “Manter viva a pracinha é garantir que a história do Recife continue sendo contada a céu aberto”, conclui a historiadora.

 

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