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Vida Urbana
200 ANOS

Quando a ditadura de Vargas matou estudante de Direito na sacada do Diario

A décima reportagem retrospectiva dos 200 anos relembra o assassinato de Demócrito de Souza Filho, em 1945, e a luta do Diario de Pernambuco contra a máquina repressora do interventor Agamenon Magalhães e pela redemocratização do país

Carlos Lopes

Publicado: 27/09/2025 às 08:00

Getúlio Vargas implantou o Estado Novo no país entre 1937 e 1945/ARQUIVO DP

Getúlio Vargas implantou o Estado Novo no país entre 1937 e 1945 (ARQUIVO DP)

Ao longo de quase dois séculos, o Diario de Pernambuco cobriu inúmeras tragédias. Mas no dia 3 de março de 1945, o antigo prédio do jornal, localizado em frente à Praça da Independência, no centro do Recife, é que foi palco de uma. A décima reportagem retrospectiva dos 200 anos do jornal em circulação mais antigo da América Latina remonta o assassinato do líder estudantil Demócrito de Souza Filho.

Em uma das sacadas do prédio do Diario de Pernambuco, o estudante da Faculdade de Direito do Recife, Demócrito de Souza Filho, aguardava o pronunciamento de sociólogo Gilberto Freyre, durante uma manifestação contra o Estado Novo de Getúlio Vargas. Uma bala disparada por policiais, no meio da multidão, acertou a sua testa. Seu corpo caiu na redação do jornal, em meio a uma poça de sangue. Mas o sangue de Demócrito não foi em vão.

O episódio repercutiu no país inteiro, implodindo ainda mais a estrutura já deteriorada do sistema do Estado Novo de Vargas, que viria a ser deposto meses depois. O crime foi cometido pelas forças de segurança do interventor do estado de Pernambuco, Agamenon Sérgio de Godói Magalhães (passando o bastão para Etelvino Lins), a serviço do ditador.

O Diario de Pernambuco chegou a ser ocupado por militares e impedido de imprimir suas edições para não contar a história da morte de Demócrito. Mas não se rendeu à máquina de repressão montada por Agamenon Magalhães. Trinta dias depois, após uma batalha judicial e com uma liminar nas mãos, voltou a circular e registrou em suas páginas mais um capítulo da história do Brasil.

No início de 1945, o Brasil vivia sob a égide do Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas imposta desde 1937 e inspirada nos ideais fascistas. Somete em 1942, foi que o país aderiu, forçadamente, ao bloco aliado. Internamente, havia muita perseguição política, censura e um nacionalismo exacerbado.

No caso do estado de Pernambuco, a ditadura de Vargas era exercida em sua plenitude pelas mãos do seu interventor federal. Agamenon Magalhães era pessoa da mais alta confiança do presidente e, desde 1937, na implantação do Estado Novo, acumulava ministérios e o executivo estadual.

Em fevereiro de 1945, ele assumiu o Ministério da Justiça, deixando Etelvino Lins como interventor em Pernambuco. Foi quando aconteceu o assassinato de Demócrito de Souza Filho. Mas a máquina de repressão de Agamenon Magalhães ainda cuspia balas.

Demócrito era filho de um conhecido advogado em Pernambuco e um engajado líder na Faculdade de Direito do Recife. As atrocidades cometidas pelo Estado Novo, e por sua fiel representação no estado, eram contestadas e denunciadas pelo movimento estudantil, dentre outros.

No dia anterior a sua morte, Demócrito e outro estudante de Direito, Jorge Carneiro da Cunha, chegaram a rasgar uma fotografia do ditador e distribuir os pedacinhos aos frequentadores do restaurante Lero-Lero. Não demorou para que a polícia política chegasse ao local.

Demócrito e seu amigo já não estavam lá. Esconderam-se no prédio do Diario de Pernambuco. Na madrugada do dia 3, quando tentou deixar o exílio provisório, chegou a ser ameaçado por um homem não identificado como da força de segurança. Horas depois, de volta ao prédio do DP, como um dos organizadores da manifestação contra o Estado Novo, na sacada da redação, levou um tiro na testa.


“Continuaremos a denunciar os criminosos à nação”

“Amparado na Justiça e na Lei, volta o DIARIO DE PERNAMBUCO a circular, mais de trinta dias depois dos trágicos acontecimentos da praça da Independencia, quando caiu sem vida, assassinado por elementos da policia civil do Estado, o nosso bravo companheiro Democrito de Souza Filho. E quando em seguida a esses dramaticos acontecimentos, nos foi imposta pela policia politica do governo do Estado a maior violencia, que um Jornal jamais sofreu, neste paiz: a sua ocupação pela força armada. Todo mundo sabe que este foi o unico meio que o governo achou para manter sob censura os acontecimentos do dia 3, nos quais a sua responsabilidade não precisa mais ser destacada, de tal modo se acha na consciencia publica.”

Abriu o editorial da edição do dia 9 de abril de 1945, publicado na primeira página sob a manchete “Continuaremos a denunciar os criminosos à nação – Até que a justiça os arraste para o banco dos réus”. O texto forte trouxe aos pernambucanos, 37 dias após o assassinato de Demócrito, o que, de fato, havia acontecido no dia 3 de março.

E nos dias seguintes, quando a redação do Diario de Pernambuco havia sido “empastelada”, no jargão jornalístico, uma forma violenta e ameaçadora de silenciar a imprensa.

“Desocupado militarmente o DIARIO, ao anoitecer do dia 9, somente nos foi permitido circular, sob censura previa e sem poder comentar, nem noticiar os acontecimentos do sábado sangrento. E' claro que um Jornal da responsabilidade do DIARIO não poderia submeter-se a uma imposição tão humilhante”, relatava o editorial.

“E o DIARIO Interrompeu a sua circulação. Era a unica maneira que tinhamos de protestar contra o capricho de um governo, que se colocava ostensivamente fóra da lei.”

Desde a implantação do Estado Novo, Agamenon Magalhães havia criado em Pernambuco uma espécie de pool de veículos de comunicação, onde eles receberiam subsídios federais a fim de propagar os feitos dos governos, local e nacional. Embora de origem privada, esses órgãos atuaram como porta-vozes da ditadura, servindo de suporte ideológico do Estado Novo na manipulação do povo pernambucano.

Silenciado em Pernambuco, pela repressão ao Diario de Pernambuco e pela conivência de outros veículos, o assassinato de Demócrito teve o efeito de uma bomba na estrutura ambígua e desgastada do Estado Novo. Diversos jornais do resto do país deram total cobertura ao caso. Políticos e personalidades nacionais expuseram a indignação e repudiaram as ações da ditadura de Vargas.

“O fechamento do DIARIO DE PERNAMBUCO encontrou toda a opinião brasileira a mais intensa repercussão. Todos os grandes jornais de paiz protestaram contra esse abuso de poder. As vozes mais preclaras da consciencia nacional se juntaram a esse coro de protestos. A verdade, porem, é que surdos se mostraram aqueles que poderiam dar qualquer providencia.”

O editorial da edição do dia 9 de abril seguiu desconstruindo a nota oficial da polícia de Pernambuco, publicada na íntegra pelos concorrentes, e alegava, dentre outros absurdos, que os tiros haviam sido disparados de dentro da redação do Diario de Pernambuco contra apoiadores de Getúlio Vargas, que estariam no comício da Praça da Independência.

“A nota da polícia mentiu, afirmando que tiros partiram do DIARIO, quando se realizava um comício na praça da Independencia, em favor do presidente Getulio. Quando esse comicio - que era aliás mais uma provocação - terminou, a passeata dos estudantes ainda não havia chegado diante do DIARIO. O tal comicio acabou normalmente, ficando então os provocadores espalhados nos quatro cantos (...)

A verdade é que os primeiros tiros foram disparados pelos provocadores quando os estudantes subiam ao DIARIO para ouvir a palavra de Gilberto Freyre. E na segunda descarga -quando a caminhonete tragica descarregou na praça a turma de guardas civis (aquela mesma que a nota diz ter disparado tres ou quatro tiros para o ar) foi que caiu Democrito de Souza Filho, debruçado na varanda do DIARIO.”

O Diario voltou a circular a partir daquela data. E, como deixou claro no editorial, sem recuar perante o terror provocado pela força policial do interventor de Pernambuco. Na linha fina, aquele pequeno texto abaixo da manchete, um recado ao Estado Novo:

“O sangue do nosso martir não foi derramado em vão – com as idéias da Revolução Francesa fizemos aqui a Revolução de 17 e de 24 – fizemos a República e estamos fazendo a redemocratisação do Brasil”.


Não venceram a bravura do rapaz indômito

O jornal do dia 9 de abril registrou todo o episódio envolvendo a morte de Demócrito e o impacto que ela causara no regime totalitário devido à repercussão nas semanas que se seguiram.
Para marcar o 30° dia do assassinato do estudante, um comício foi realizado na praça em frente à Faculdade de Direito, assistido por aproximadamente 30 mil pessoas. Um evento no Diario, com a presença do oposicionista fluminense Carlos Lacerda, marcou a inauguração da foto de Demócrito na redação do jornal.

A edição trouxe depoimentos e artigos de personalidades nacionais das mais diversas áreas. O escrito paraibano José Lins do Rego definiu Demócrito assim: “Era um rapaz belo, de olhar claro, de conciencia limpa. E era um rapaz sem temor, capaz de todos os sacrifícios pelos ideais que amava como a sua própria vida”, relembrando o dia em que conhecera o estudante.

“Vi-o aqui, não faz muito tempo, e me disse que só queria como reivindicação era ver o povo de sua terra livre da tirania de sinistros agentes fascistas”.

Indignado com o crime, José Lins subiu o tom: ”Meus amigos, o crime deita vez não foi em Granada, com Franco no governo da louca Espanha, o crime desta vez foi em Recife, com um Etelvino, senhor de sicarios, matador de mocidade. O crime foi em Recife e, um dia, em Recife, a Justiça, que não será a do sr. Agamenon Magalhães, falará pelo povo, pela furia sagrada do povo, contra os carrascos que assassinaram a mocidade, como se matassem cachorros doentes.”

 

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