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Vida Urbana
INSTITUIÇÕES CENTENÁRIAS

Da prisão ao patrimônio cultural: a história da Casa de Detenção, hoje Casa da Cultura de Pernambuco

A antiga Casa de Detenção do Recife foi construída em 1855

Larissa Aguiar

Publicado: 22/09/2025 às 04:30

Casa de Detenção do Recife foi projetada para ser uma das penitenciárias mais modernas do Brasil /Foto: Arquivo/DP

Casa de Detenção do Recife foi projetada para ser uma das penitenciárias mais modernas do Brasil (Foto: Arquivo/DP)

Por mais de um século, um prédio imponente às margens do rio Capibaribe abrigou histórias de dor, controle social e marginalização. Construída em 1855, a Casa de Detenção do Recife foi projetada para ser uma das penitenciárias mais modernas do Brasil oitocentista. Hoje, rebatizada de Casa da Cultura de Pernambuco, o edifício carrega em suas paredes a memória de um sistema prisional marcado pela exclusão e, ao mesmo tempo, simboliza a ressignificação de um espaço que deixou de aprisionar corpos para abrigar manifestações artísticas, memória e turismo.

A construção surgiu em um contexto de grandes transformações sociais e urbanas do século XIX. À medida que o trabalho escravizado começava a dar sinais de declínio, a lógica da mão de obra se reconfigurava: cabia ao Estado utilizar presos em serviços públicos, como a abertura de estradas e obras de infraestrutura. As cenas de homens quebrando pedras ou servindo em oficinas de marcenaria e cantaria faziam parte da rotina do espaço.

Idealizado pelo engenheiro José Mamede Alves Ferreira, o prédio foi concebido em formato de cruz, seguindo o princípio panóptico, que permitia ampla visão dos corredores e celas a partir de um ponto central. Do mezanino, os guardas conseguiam observar a movimentação de todos os detentos. O desenho arquitetônico refletia a ideia de controle absoluto, marca do século XIX. Grades de ferro fundido da antiga Casa de Fundição e estruturas metálicas de sustentação, ainda hoje preservadas, conferem ao edifício uma imponência que atravessou gerações.

Além da ala masculina central, a Casa de Detenção contava com um pavilhão feminino e outras edificações auxiliares, demolidas ao longo do século XX. O conjunto formava um grande complexo prisional, cercado por muralhas, do qual restam apenas trechos e uma guarita.

Mais do que um espaço de punição, a Casa de Detenção esteve ligada ao que os documentos da época chamavam de “limpeza social”. Escravizados idosos, pobres considerados “alienados” e pessoas marginalizadas eram levados para dentro de suas celas. Os registros guardam histórias de personagens que revelam a violência simbólica do encarceramento.

Um dos casos emblemáticos é o de uma mulher negra, sem identificação de familiares, possivelmente escravizada ou recém-liberta. Recusava roupas, rasgava os tecidos que recebia e circulava nua pelos pátios. Ganhou a alcunha de “Felicidade” e, nos documentos administrativos, aparecia como um problema por gerar gastos com vestimentas. Seu destino reflete a criminalização da loucura e a marginalização de corpos dissidentes na sociedade do período.

Entre os detentos também estiveram figuras de destaque político, como João Dantas, acusado de assassinar João Pessoa em 1930. Sua morte, ocorrida dentro da instituição em circunstâncias ainda discutidas, marcou a memória da prisão.

Nos registros funerários, outra marca da exclusão: enquanto famílias da elite anunciavam missas e velórios em jornais, os presos apareciam em notas sucintas, com nome, idade aproximada, cor e, muitas vezes, a causa da morte registrada apenas como “alienação”. Muitos eram sepultados a partir da própria detenção, sem qualquer cerimônia.

O fechamento e a transição

Depois de 118 anos em funcionamento, a Casa de Detenção foi oficialmente desativada em 15 de março de 1973. A superlotação e as condições precárias levaram à transferência dos detentos para a Penitenciária Agrícola de Itamaracá. O imenso edifício, que já havia perdido parte de suas alas, ficou esvaziado.

Poucos anos depois, em 1976, o espaço ganhou nova vida. Restaurado e adaptado, foi inaugurado como Casa da Cultura de Pernambuco. O prédio panóptico, que antes servia ao controle, passou a acolher o artesanato, a música e a memória. Tornou-se centro cultural e turístico, referência para visitantes e moradores. Nas antigas celas, onde antes havia grades e solidão, hoje funcionam lojas de artesanato e espaços de expressão cultural.

"Esse espaço foi, originalmente, uma prisão, que acabou sendo transformada para uso cultural. Então, além de encontrar o artesanato, o visitante vai realmente estar imerso na história de Pernambuco e do Recife. Esse, para mim, é o ponto mais marcante", pontua Priscilla Marques, superintendente de Equipamentos Culturais de Pernambuco.

Apesar da transformação, o passado permanece vivo. Quem caminha por seus corredores ainda encontra as marcas do antigo presídio: as grades, o mezanino, as paredes grossas e a estrutura de ferro. A atmosfera mistura a dor da exclusão com a vitalidade das manifestações culturais que hoje ocupam o lugar.

Para a historiadora Vanessa Sial, a Casa da Cultura é “um espaço de memória que nos convida a refletir sobre as formas de controle social e, ao mesmo tempo, sobre a capacidade de ressignificação de um patrimônio. Não podemos esquecer que ali se consolidou um modelo de criminalização dos pobres, mas também é ali que hoje o povo se reconhece em sua cultura e identidade”.

O historiador Artur Garcea reforça a importância da preservação do espaço: “A Casa da Cultura é um exemplo de como um edifício pode carregar as marcas do sofrimento e, ao mesmo tempo, projetar um futuro de valorização cultural. Ela nos lembra que o patrimônio não é apenas pedra e ferro: é também memória coletiva”.

"Nossa principal intenção, hoje, é justamente essa: que a população local use esse espaço para o lazer. Temos uma programação robusta, com oficinas, apresentações e visitas escolares, como a que aconteceu recentemente com alunos da Boa Vista", afirma a superintendente Priscilla Marques.

O espaço também receberá reparos para preservar a memória do Estado. "Também está prevista uma grande requalificação. Não vamos fechar o espaço, mas a obra será feita em etapas. O processo licitatório deve começar em novembro ou dezembro, e as obras no ano que vem", diz Priscilla..

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