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Vida Urbana
200 ANOS

A história que poucos sabem: a festa que o Recife fez para receber a Seleção campeã de 1958

Coube ao torcedor recifense dar o primeiro abraço nos campeões mundiais na Suécia. Uma linda festa cujos bastidores foram revelados por reportagem do Diario de Pernambuco

Carlos Lopes

Publicado: 09/08/2025 às 11:29

Diario de Pernambuco deu ampla cobertura sobre a chegada da Seleção campeã em 1958/REPRODUÇÃO/EDIÇÃO DO DP

Diario de Pernambuco deu ampla cobertura sobre a chegada da Seleção campeã em 1958 (REPRODUÇÃO/EDIÇÃO DO DP)

Às 8h45 da manhã, a aeronave DC-7C da Panair tocava a pista do Aeroporto dos Guararapes. A bordo, a Seleção Brasileira de futebol, campeã da Copa do Mundo da Suécia. Do lado de fora, uma multidão de torcedores pernambucanos, que desde o último apito da decisão do mundial, quando o Brasil meteu 5x2 nos donos da casa, não parava de comemorar.

A história de como Recife foi a primeira cidade do país a recepcionar Pelé, Garrincha, Didi, o pernambucano Vavá e todos os outros craques comandados por Vicente Feola na conquista do primeiro título brasileiro de uma copa do mundo ganhou as páginas do Diario de Pernambuco há 67 anos. E volta a ser contada como parte da contagem regressiva para os 200 anos do jornal mais antigo em circulação da América Latina.

O TÍTULO INÉDITO

O primeiro título do país na história das copas veio após o estrondoso silêncio no Maracanazo, quando a Seleção deixou escapar a vitória sobre o Uruguai e deu adeus ao título de 1950. E o vexame da Batalha de Berna, nome dado ao jogo em que o esquadrão nacional foi atropelado na bola pelos húngaros e apelou para a pancadaria no final da partida, no mundial de 1954.

A culpa pelos fracassos fora atribuída aos jogadores de “cor”, fracos no emocional e incapazes de enfrentarem a pressão de uma copa. O preconceito era reverberado pelos quatro cantos do país e velado, internamente, na delegação brasileira que embarcou para a Suécia.

A Seleção dos negros Didi e Pelé, e dos mestiços Garrincha e Vavá, grandes destaques da copa, superou barreiras que nenhuma outra passou perto, baniu o ‘complexo de vira-lata’ citado por Nelson Rodrigues, e foi a melhor das representações de um povo que se encantava com a arte e a raça do futebol nacional nas gélidas Gotemburgo e Estocolmo.

O 5x2 sobre os anfitriões suecos no dia 29 de junho mostrou a supremacia do melhor futebol do mundo, dito não apenas pelos brasileiros. Pelé já era chamado de Rei, aos 17 anos, e Didi, eleito como craque da copa.

Na longa viagem de retorno ao Brasil, a Seleção recebeu homenagens nos aeroportos de Londres e Paris, e os jogadores cansaram o punho de tantos autógrafos. Na terceira parada, em Lisboa, foram recebidos com um coquetel oferecido pela embaixada brasileira e ovacionados nos estádios do Sporting e Benfica, com direito a volta olímpica e exibição da taça Jules Rimet. Logo após, enfim, embarcariam para o Brasil.

A PRIMEIRA PARADA NO BRASIL

Recife acordou debaixo de um forte toró. O que não impediu centenas de torcedores pernambucanos de se encaminharem ao aeroporto desde o começo da manhã. Ver com os próprios olhos os novos deuses da bola era o desejo de uma massa que, inicialmente, começou a se aglomerar nos Guararapes, a partir das 6h.

A aeronave da Panair aterrissou às 8h45 e, após algum tempo de espera, os campeões mundiais foram descendo a escada de apoio, protegidos por guarda-chuvas. A pista do aeroporto foi tomada em parte por imprensa e autoridades, mas principalmente por muitos torcedores que romperam o cordão de isolamento da polícia e tentaram se aproximar dos seus ídolos.

Deu trabalho levá-los até os carros da comitiva que desfilaria por Boa Viagem até o centro da cidade. Difícil mesmo foi atravessar a Avenida Guararapes, pela primeira vez tomada por uma multidão, munida de guarda-chuvas e sombrinhas a cantar e festejar, sob uma névoa de papel picado atirado do alto, das janelas dos prédios.

Os craques nacionais puderam experimentar, com décadas de antecedência, o gostinho do que seria o desfile do Galo da Madrugada. Vencida a Guararapes, a comitiva desembarcou no Clube Português, nas Graças, onde um ‘brunch’ havia sido oferecido à delegação do escrete brasileiro.

Os jogadores entraram no salão do clube exaustos após a maratona de homenagens desde o embarque em Estocolmo. A curiosidade maior era saber onde estava o tal do Pelé, que tanto jogou na Suécia, a ponto de ser chamado de rei com apenas 17 anos. Identificado, foi ovacionado e curvou-se em agradecimento aos seus novos súditos.

O pernambucano Vavá chorou com as homenagens prestadas na volta para casa. O Sport, onde ele havia iniciado a carreira, o presenteou com a estatueta de um leão em bronze, entregue pelo então deputado Adelmar Costa Carvalho. O centroavante da Seleção, que vencera as mais duras marcações na Suécia, sucumbiu ao corpo a corpo dos fãs pernambucanos.

As moças presentes no recinto elegeram o mais belo da Seleção. “O zagueiro Belini, o capitão da equipe nacional, foi considerado pelos brotinhos pernambucanos o bonitão”, relatava o texto da matéria de cobertura. “Realmente, Belini é um rapaz simpático, alto, espadaúdo, alegre e comunicativo. Prendeu a atenção do sexo frágil, em particular.”

O comandante Vicente Feola conversou com a reportagem do DP, antes da delegação retornar aos Guararapes para seguir rumo à Capital Federal, o Rio de Janeiro na época, onde o presidente da República Juscelino Kubitschek os aguardava.

“Pode dizer ao seu povo: ‘Sinto-me feliz e imensamente grato ao Diario de Pernambuco, pela maneira correta, imparcial, que deu aos seus comentários durante a campanha do meu selecionado’”.

OS BASTIDORES DO DESEMBARQUE

Recife foi a primeira cidade do país a receber os jogadores da Seleção Brasileira campeões da Copa do Mundo da Suécia de 1958. Os craques do escrete nacional desembarcaram nos Guararapes, foram homenageados e retribuíram o carinho do torcedor pernambucano na maior manifestação popular que a capital pernambucana viu até então. Uma linda festa.

Mas até a festa acontecer, muita água rolou nos bastidores. E como faz parte do bom jornalismo mostrar o fato por todos os ângulos, o Diario de Pernambuco publicou, com exclusividade, detalhes sobre o que se passou até o primeiro jogador da Seleção Brasileira colocar o pé para fora da aeronave da Panair, após a aterrissagem nos Guararapes.

Adonias Moura, que por décadas foi o editor de Esportes do Diario, assinou a reportagem trazendo os bastidores de todo processo que culminou no desembarque dos campeões mundiais no Recife. “História que poucos sabem”, antecipou o ‘chapéu’, acima do título “Paulo Machado de Carvalho só permitiu desembarque sob ameaça e com medo do povo”, referindo-se ao chefe da delegação brasileira.

Tudo começou com um telegrama enviado pelo general Kruel, chefe da Polícia do Rio de Janeiro, ao governador de Pernambuco, general Cordeiro de Farias, no dia anterior. A mensagem proibia o desembarque da Seleção Brasileira no Recife, conforme orientação do presidente da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), João Havelange.

A parada na capital pernambucana seria por motivos técnicos, a fim de reabastecer e realizar eventuais procedimentos de manutenção, com toda delegação nacional permanecendo no interior da aeronave. Em seguida, levantaria vôo com destino ao Rio de Janeiro, a Capital Federal, onde o presidente da República Juscelino Kubitschek a aguardava para saudação oficial aos campeões.

Ao tomar conhecimento da proibição, o matreiro presidente da Federação Pernambucana de Futebol, Rubem Moreira, convocou a imprensa e anunciou, com os mínimos detalhes, todo um esquema de desfile dos jogadores campeões por ruas e avenidas do Recife, convocando os torcedores a participarem das homenagens em solo pernambucano.

Quando o DC-7C da Panair tocou a pista de aterrissagem do Aeroporto dos Guararapes, um mar de gente, ansioso e turbulento, já aguardava o momento de ver de perto os craques brasileiros.

Rubem Moreira esperava sensibilizar o chefe da delegação brasileira, Paulo Machado de Carvalho. Quem sabe, ao ver aquela festa gigante do torcedor pernambucano para recepcionar os campeões do mundo, ele poderia ceder, ao menos, algumas horas, de permanência da delegação em solo recifense.

Após a troca de cumprimentos protocolares entre o staf da CBD e as autoridades locais (o governador Cordeiro de Farias e prefeito Pelópidas Silveira) e o próprio presidente da FPF, Paulo Machado se manteve irredutível: a delegação da Seleção não botaria os pés fora do avião. Rubem Moreira partiu, então, para o que poderíamos chamar de o seu plano B.

“Tendo dito que não sairia do aeroporto, o sr. Paulo Carvalho de Machado foi praticamente arrastado para o balcão internacional da Panair onde foi escorado na parede pelo presidente da Federação Pernambucana de Futebol, que o avisou que ninguém se responsabilizaria com a atitude do povo, logo fosse anunciado o regresso imediato da delegação”, contou Adonias Moura na sua reportagem.

“O sr. Rubem Moreira afirmou ao desportista paulista que mais de 10 mil pessoas estacionavam nas proximidades do aeroporto, e que a força encarregada do policiamento não levantaria um dedo contra as mesmas, garantindo apenas a integridade do aparelho pousado na pista”, complementou o texto.

Paulo Machado entendeu o argumento de Rubem Moreira e os jogadores da Seleção puderam participar da grande festa de comemoração pelo primeiro título de copa do mundo do Brasil, enquanto o presidente da República Juscelino Kubitschek aguardava os campeões no Rio.

 

 

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