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INCLUSÃO

Inclusão no papel, desafios na prática: os 34 anos da Lei de Cotas e a busca por dignidade no mercado de trabalho

Histórias como a da psicóloga Eduardo Coutinho revelam que, apesar dos avanços legais, o preconceito ainda é o maior obstáculo para a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho

Larissa Aguiar

Publicado: 04/08/2025 às 06:31

Há exatos 34 anos, entrava em vigor a Lei nº 8.213/1991, conhecida como Lei de Cotas, estabelecendo a obrigatoriedade de contratação de pessoas com deficiência ou reabilitadas da Previdência Social por empresas com cem ou mais empregados. Desde então, milhões de brasileiros passaram a ter, ao menos no papel, o direito de ocupar seu espaço no mercado de trabalho.

De janeiro a junho deste ano, o Brasil registrou 63 mil contratações de pessoas com deficiência ou reabilitadas, segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Mais de 93% dessas admissões ocorreram em empresas obrigadas a cumprir a cota. No Nordeste, foram pouco mais de 8,4 mil contratações.

“É a prova de que, sem obrigatoriedade, a maioria das empresas não teria sequer incluído essas pessoas em seus quadros”, avalia a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) em Pernambuco, Melícia Carvalho Mesel, coordenadora regional da Coordigualdade. “O preconceito ainda é a principal barreira. Temos pessoas qualificadas, prontas para o trabalho, mas as empresas continuam se escondendo atrás de justificativas infundadas.”

Em 34 anos de vigência, a Lei de Cotas permitiu a realização de mais de 139 mil auditorias em empresas de todo o país, resultando na inclusão de mais de meio milhão de pessoas com deficiência no mercado formal. Somente em 2024, foram 7 mil fiscalizações e 27 mil contratações efetivadas. Mesmo assim, apenas 53% das vagas previstas por lei estão hoje ocupadas.

No Estado, o MPT vem intensificando a atuação fiscalizatória e educativa com o projeto “Acessibilidade e Inclusão”. A proposta é fazer valer não apenas a letra da lei, mas o espírito de cidadania que ela carrega. “O trabalho é um eixo fundamental da existência digna. E quando uma pessoa com deficiência é contratada, toda a sociedade ganha. Ganha a empresa, ganha a economia e, principalmente, ganha a humanidade”, afirma Mesel.

Ela destaca que muitas empresas tentam driblar a lei oferecendo apenas cargos com salários baixos, sem adaptações, tornando a experiência do trabalhador PCD desestimulante e, por vezes, inviável. “São oferecidas funções pouco atrativas, ambientes inacessíveis, ausência de tecnologias assistivas. Isso não é inclusão, é exclusão disfarçada”, completa.

Invisibilidade e resistência

A psicóloga Eduarda Coutinho, de 24 anos, conhece essa realidade de perto. Ela convive com a microtia congênita, condição que impediu o desenvolvimento de sua orelha e canal auditivo, resultando em perda auditiva severa unilateral. Por anos, ela escondeu sua condição, temendo não ser levada a sério em uma profissão onde “escutar” é a principal ferramenta.

“No começo, não colocava no currículo que era PCD. Achava que ninguém entenderia como uma psicóloga com deficiência auditiva poderia exercer bem a função. Por ser uma deficiência ‘invisível’, isso passava despercebido, até que surgiam os julgamentos: ‘ela fala alto demais’, ‘parece desatenta’”, relata Eduarda. “Fui alvo de comentários, e em uma das situações onde meu aparelho estava visível uma colega de trabalho o arrancou, em tom de brincadeira, imediatamente sai da sala sem conseguir reagir.” E ao relatar à empresa, recebeu um “nossa, que situação”.

Representatividade

Apesar das dores, Eduarda encontrou espaço para florescer. Em uma escola onde trabalhava, foi convidada a dar uma palestra para alunos sobre sua vivência. “Depois disso, uma aluna com deficiência auditiva passou a falar mais. Uma mãe me procurou, dizendo que seu filho também tinha microtia. Foi emocionante. Eu percebi que existiam outras pessoas como eu.”

O filme Procurando Nemo teve um papel simbólico e afetivo importante na trajetória de Eduarda. Lançado quando ela ainda era criança, a animação apresentava, pela primeira vez, um protagonista com uma característica física semelhante à dela: uma nadadeira menor, que o tornava diferente dos demais. “Aquilo me marcou muito. Eu dizia que o Nemo era igual a mim”, conta. Ver um personagem com uma deficiência sendo retratado com leveza, coragem e sensibilidade a ajudou, ainda na infância, a construir uma relação mais positiva com sua própria condição. “O filme me fez sentir menos sozinha. Era como se dissesse que estava tudo bem ser diferente.”
Em dezembro de 2023, ela passou por uma cirurgia para instalação de um novo modelo de aparelho auditivo. “O médico disse que nunca tinha operado alguém com minha condição. Mas ao entrar em grupos de apoio, vi que não sou rara. Apenas não somos vistas.”

Apesar do reconhecimento em alguns ambientes, ela relata que evitou mencionar sua deficiência em entrevistas. Em uma situação simbólica, uma coordenadora, meses após a contratação, se surpreendeu ao saber que ela era PCD. “Pediu meus documentos e me incluiu na cota. Até então, ninguém sabia.”

Deficiência não é sinônimo de incapacidade

Segundo o IBGE, 7,3% da população brasileira, o equivalente a mais de 12 milhões de pessoas, têm algum tipo de deficiência. No entanto, a ideia de que “deficiente é quem está numa cadeira de rodas ou é surdo total” ainda persiste. Eduarda conta que já foi invalidada mesmo com laudo, aparelho e documento oficial. “Fiz concurso para PCD, fui aprovada com ótima nota. Na hora do exame médico, disseram que eu não era deficiente o suficiente. Em outro concurso, com os mesmos documentos, fui aceita.”

Essa instabilidade na avaliação da deficiência revela, segundo ela, o despreparo das instituições. “Existem diferentes tipos e formas de deficiência um espectro, e as empresas precisam estar preparados para entender isso.”

Mais que cumprir cotas

A procuradora Melícia Mesel ressalta que o objetivo da Lei de Cotas vai muito além de números. “Não é só preencher uma vaga. É promover acolhimento, é reconhecer a pessoa como sujeito pleno. Empresas que abraçam a diversidade relatam não apenas ganhos produtivos, mas ganhos humanos, criativos, institucionais.”

Ela cita o ditado “nada sobre nós sem nós” como norte para a atuação do MPT. “As pessoas com deficiência não são objetos da política pública. São sujeitos de direitos, consumidores, cidadãos. A empresa que contrata com responsabilidade, com adaptação, com empatia, amplia sua visão de mundo”

Para Eduarda, sempre o apoio familiar sempre deu a firmeza da competência em suas atividades exercidas. “O que eu espero é que minha história ajude outras pessoas a se aceitarem. E que as empresas parem de olhar para a deficiência antes de olhar para a pessoa. Porque capacidade, nós temos de sobra.”

Canais de denúncia:
Empresas que não cumprem a cota legal podem ser denunciadas ao Ministério Público do Trabalho ou à Superintendência Regional do Trabalho. A identidade do denunciante é preservada.

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