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ALERTA

Celular em excesso: danos invisíveis que afetam corpo, mente e sociedade

Um dos articuladores da lei federal que proíbe o uso de celulares nas escolas, o pediatra Daniel Becker alerta para o cenário de crescimento exponencial de transtornos mentais entre adolescentes desde a popularização do celular

Larissa Aguiar

Publicado: 02/06/2025 às 07:41

Pediatra e professor Daniel Becker/TIAGO NUNES/DIVULGAÇÃO

Pediatra e professor Daniel Becker (TIAGO NUNES/DIVULGAÇÃO)

 O uso excessivo de celulares por crianças e adolescentes já ultrapassou o limite da preocupação individual para se tornar uma questão de saúde pública. A afirmação é do sanitarista e pediatra Daniel Becker, um dos articuladores da lei federal que proíbe o uso de celulares nas escolas públicas e privadas de educação básica.

Em palestra realizada nesta segunda-feira (26), no auditório da Unit-PE, em Recife, Becker apresentou dados alarmantes sobre os efeitos das telas digitais no desenvolvimento físico, emocional e social dos jovens brasileiros. "O que estamos vivendo é um experimento social que não vai dar certo", alertou o especialista.

Segundo Becker, os prejuízos da exposição prolongada ao celular não se limitam à visão, à postura ou ao sedentarismo. Eles envolvem também o aprendizado, o comportamento, a saúde mental e até a formação ética e política das novas gerações. “Estamos notando problemas graves: irritabilidade, isolamento, consumismo, perda do sono, ansiedade, depressão e até automutilação”, pontuou.

O Brasil, afirmou o pediatra, vive um cenário de crescimento exponencial de transtornos mentais entre adolescentes desde a popularização do celular. Entre 2013 e 2023, os casos de depressão e ansiedade aumentaram 1.500% entre jovens de 10 a 14 anos, e 3.300% na faixa dos 15 aos 19. “É astronômico o que está acontecendo com a nossa adolescência”, destacou.

Sem neutralidade

Becker também apontou que o conteúdo acessado pelas crianças nas redes sociais não é neutro. Ao contrário, é manipulado por algoritmos com objetivos comerciais, que retêm a atenção com vídeos curtos, mensagens de ódio e padrões irreais de beleza e consumo.

"Para os meninos, pornografia e jogos. Para as meninas, a comparação com blogueiras e influenciadoras. Isso gera frustração, vício e apatia", detalhou. O especialista utiliza o termo brainrot — “apodrecimento cerebral” — para descrever o fenômeno da passividade intelectual provocada pelo consumo contínuo de conteúdos vazios e emocionalmente intensos.

A violência digital também preocupa. Becker alerta para o acesso irrestrito a conteúdos ideológicos extremos e a riscos como pedofilia, golpes e manipulações. “O crime migrou para a internet. Crianças não têm preparo para lidar com isso”, afirmou.

Para ele, o celular com internet deveria ser adiado ao máximo, com acesso controlado e supervisionado a partir dos 14 ou 16 anos. “Você precisa do celular, seu filho não precisa”, resumiu.

Mas os riscos não são apenas individuais. Há um pano de fundo social que potencializa os danos. A desigualdade, a violência doméstica e a fragilidade dos vínculos familiares tornam crianças e adolescentes ainda mais vulneráveis ao domínio das telas.

“Somos uma das sociedades mais desiguais do mundo. Isso mina os pilares do cuidado e da convivência”, disse Becker. Segundo ele, 65% dos homicídios de crianças no Brasil são cometidos por familiares, e a maioria dos abusos sexuais contra menores de 14 anos ocorre dentro de casa.

Becker defende que a responsabilidade não pode recair apenas sobre as famílias ou as escolas. É preciso envolver o Estado e toda a sociedade. “Temos que regulamentar redes sociais, apoiar políticas públicas que tornem a cidade mais amigável às famílias, com praças, parques, atividades ao ar livre”, propôs. Também citou o movimento social Desconecta, formado por pais e mães que buscam retardar o acesso dos filhos a smartphones e redes.

A relação entre pais e filhos, segundo Becker, é uma base essencial para enfrentar o problema. O tempo de qualidade, o afeto e a escuta são ferramentas insubstituíveis para o desenvolvimento saudável. “O vínculo é a pista de decolagem para todo o resto. Sem isso, não há desenvolvimento possível.”

Equilíbrio

Becker criticou ainda os modelos educativos autoritários e permissivos, defendendo equilíbrio, regras claras e presença efetiva. “O filho não é propriedade dos pais. Crianças são sujeitos de direitos. Palmada não educa. É violência e tem efeitos duradouros na saúde mental e social”, afirmou.

Para o pediatra, o brincar livre, o contato com a natureza e a convivência com outras crianças são os verdadeiros antídotos à dependência digital. “A infância é brincadeira. Sem brincar, não há infância. E sem infância, não há bem-estar na vida.”

A lei federal que proíbe o uso de celulares em escolas é, para ele, um passo importante. “Na escola, a criança tem a chance de se desconectar por algumas horas e viver o mundo real. É uma conquista da infância”, declarou com firmeza.

Com dados, argumentos e alertas, Daniel Becker deixou um recado claro: o enfrentamento da crise digital entre crianças e adolescentes não será feito com discursos alarmistas nem com soluções simplistas. É preciso coragem coletiva para mudar hábitos, criar alternativas e, sobretudo, recuperar o tempo da infância.

 

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