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DIA DA CONSCIÃ?NCIA NEGRA

Racismo e esporte ainda não separaram

Medidas para combater o preconceito ainda engatinham; relembre casos

Publicado: 20/11/2016 às 13:52

Em 2005, quando jogava no São Paulo, Grafite sofreu ofensas racistas do argentino Desábato[SAIBAMAIS]O episódio já tem mais de 10 anos, mas ainda é emblemático. Foi a primeira vez, no Brasil, que um caso de racismo ocorrido durante uma partida foi formalmente tratado como crime. No primeiro tempo do jogo São Paulo x Quilmes, no Morumbi, pela Libertadores, Grafite se desentendeu com o zagueiro Desábato. Na confusão, que resultou na expulsão de ambos, o atacante foi xingado. “Negro de m...”, disse o argentino. Não era a primeira vez que o brasileiro sofria insultos racistas. Não seria a última. 

Assim foi e continua sendo. E isso deve-se, em grande parte, ao fato de episódios assim terem sido ignorados por muito tempo. Ainda são. O próprio Grafite lembra que, uma semana antes, no jogo de ida, na Argentina, fora hostilizado. “Na partida anterior havia sido bem mais duro. Tivemos que descer no meio da torcida e levamos tapa na cabeça, jogaram banana, chamaram de macaco… E aquele estádio deles é antigo. O alambrado fica muito perto da linha lateral. Os torcedores xingavam bastante, continuaram jogando banana… O curioso é que, nesse jogo, troquei de camisa com o Desábato”, lembra o atleta, hoje no Santa Cruz. “Uma semana antes desse jogo eu tinha falado do que tinha ocorrido, mas passou despercebido”, acrescenta. 

E o episódio com Desábato, no Morumbi, em 14 de abril de 2005, caminhava para o mesmo destino de impunidade. Na verdade, houve uma esperança de não trilhar esse caminho. Grafite reclamou para o árbitro e falou, nas entrevistas saindo do campo, sobre o insulto sofrido. Confessa: não cogitou em momento algum levar o caso à polícia. A sua vida no futebol foi de convivência com o preconceito por conta da cor da sua pele. Caso do atacante, que prestou queixa, é lembrado até hoje em episódios de racismo

“Eu estava vendo o jogo na tevê, mas no vestiário não tinha som. Depois soube que Galvão Bueno estava falando que aquilo não se fazia, que era racismo. Eu não estava sabendo. Quando estava saindo, o Nico (Osvaldo Nico Gonçalves), que era delegado da Polícia Civil de São Paulo, disse que eu teria que ir pra delegacia com ele porque iria prender o Desábato e que aquilo não se fazia aqui.” 
 
O sentimento de impunidade acompanhou Grafite até a delegacia. “Saímos do vestiário e fomos para a delegacia. Cheguei primeiro e depois ele (Desábato) chegou com alguns membros da comissão técnica. Sentaram, conversaram, deram risada e até mexeram com minha esposa quando ela levantou para ir ao banheiro. Achavam que não ia acontecer nada”, disse. Desta vez, o fim seria distinto. “Quando deu 6h da manhã decidiram que ele ficaria preso”, relembra.

IMPUNIDADE
Desábato não permaneceu muito tempo na prisão. Foram 43 horas. Foi liberado após pagar fiança de R$ 10 mil. O caso seria encerrado e praticamente esquecido, pouco tempo depois. Virou um lugar no tempo visitado por reportagens diante de outros tantos casos que surgiram depois. Como agora.
 
O próprio Grafite tem responsabilidade nisso. Decidiu não seguir em frente com a ação. Ele justifica. “No começo tinha muita gente do meu lado. Eu virei uma referência pela luta por igualdade. Mas, nesse caminho, fui olhando para o lado e ficando sozinho. As pessoas que estavam ao meu lado, no começo, não estavam mais. Não ia dar continuidade e abraçar uma causa sozinho. Lógico que procuro defender e honrar a minha raça porque sou um privilegiado que pude combater de forma justa. Mas não poderia continuar sozinho”, lembrou.

O jogador detalha mais os motivos que o fizeram silenciar. Assim como recebeu apoio no início, ouviu críticas. Queria proteger sua família de polêmicas, ainda mais quando viu o apoio que existia ir diminuindo. “Na minha carreira aquilo não acrescentou nada de positivo. Só de negativo. Eu tinha até seis meses para decidir se daria continuidade com a queixa-crime e decidi que não. Não vinha sendo uma coisa boa para minha carreira, para minha imagem, para minha família e para minhas filhas na escola. Desábato seguiu o caminho dele e eu segui o meu.”

EUROPA
Grafite não fala da desistência em levar o processo adiante com qualquer arrependimento. Tem convicção de ter escolhido a decisão correta, pelas razões já pontuadas. Deixa na entrelinhas, porém, que poderia ser diferente fosse no tempo em que atuou na Europa, onde ele destaca um trabalho de conscientização presente - que não impede, porém, a ocorrência de novos episódios dessa natureza. 

“Eu trabalhei na Europa e o engajamento é constante. É o ano todo. Fiz campanha na Alemanha com o Naldo (zagueiro) e com jogadores africanos da Bundesliga. Aqui no Brasil esse engajamento é superficial. No mês de maio, que é da libertação dos escravos, e novembro, por causa do Dia da Consciência Negra, o pessoal da imprensa me procura bastante. Mas o engajamento em outros lugares do mundo é muito maior. Temos casos de racismo que não vêm à tona.”

Após a indignação, o silêncio 
É fácil enxergar na postura de Grafite, de desistir de levar a denúncia adiante, parte da responsabilidade pela impunidade do caso. Seria simplório, entretanto. Ignorar a sua justificativa, o seu isolamento posterior, as críticas recebidas. Que, no fim, pode se tratar de uma saída “imposta” por um preconceito silencioso, que constrange a vítima. Seria ignorar que o silêncio de Grafite encontrou eco em outros silêncios.
 
Como aconteceu com Elicarlos. Ídolo no Náutico, o atleta passou por Figueirense e Chapecoense. Quando era atleta do Cruzeiro, em 2009,o volante também sofreu por conta da cor da pele. Aconteceu numa partida da semifinal da Copa Libertadores, contra o Grêmio.

“Maxi López me chamou de macaco, eu e o Wagner partimos para cima dele. Ele falou isso para mim”, afirmou após a partida. Na hora, respondeu que pretendia prestar queixa. "Sem dúvida, vou chegar na polícia ali, vou falar para eles.” Revolta esfriada em seguida. Elicarlos não levou o caso adiante. Hoje, recusa-se a falar sobre o assunto. Volante Elicarlos, ex-Náutico, e goleira Bárbara também já foram vítimas de racismo no futebol
O mesmo aconteceu com a goleiro Bárbara. Após ser estrela na decisão por pênaltis nas quartas de final da Olimpíada do Rio, a pernambucana sofreu com o racismo pelas redes sociais. A atleta chegou a comentar o assunto, afirmou que chorou muito, mas que estava superado. Três meses após os Jogos, a goleira não quer voltar ao assunto. O Superesportes tentou contato com ela. Em um primeiro momento, Bárbara disse que preferia não falar sobre o tema, mas disse que iria pensar. No entanto, não retornou ou atendeu mais as ligações.

Nos EUA, protesto e apoio
Em qualquer evento esportivo nos Estados Unidos, antes da execução do hino nacional, o locutor do local pede para que o público fique de pé e tire qualquer tipo de chapéu que esteja utilizando. Geralmente todos seguem as ordens e ficam de pé. No dia 26 de agosto deste ano, no terceiro jogo da pré-temporada do San Francisco 49ers, o quarterback Colin Kaepernick não seguiu o público e seus companheiros de time. Decidiu sentar-se durante o hino. Queria mandar uma mensagem.

“Eu não vou ficar de pé e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime as pessoas negras e de cor. Esta postura não é por mim. Isto é porque estou vendo coisas acontecerem com pessoas que não têm voz. Pessoas que não têm uma plataforma para que suas vozes sejam escutadas”, explicou após a partida.
Jogador de futebol americano Colin Kaepernick se ajoelhou em protesto à morte de negros
Colin decidiu protestar contra os ataques da polícia às pessoas negras, que eclodiram de forma exponencial nos Estados Unidos. A sua atitude dividiu o país. Alguns, pasmem, criticaram. Criou-se um debate se ele estava desrespeitando os Estados Unidos ou não. Recebeu ameaças de morte. Ele, porém, continuou. E ganhou apoio. 

Ao invés de se sentar, Kaepernick decidiu se ajoelhar. Isso porque ouviu a opinião de um militar, categoria que se sentia ofendida pelo gesto, já que a bandeira está intimamente ligada aos veteranos de guerra e ao trabalho que eles fazem pelo país. Apenas adaptou o protesto e viu a sua iniciativa ganhar adeptos. O apoio veio de todos os lados, de todas as formas. O protesto de Kaepernick deixou de ser solitário. Eric Reid, companheiro de equipe em San Francisco, repetiu o gesto na partida seguinte. Criou-se uma avalanche.

Três dias após o apoio de Reid, foi a vez da estrela do futebol feminino Megan Rapinoe se ajoelhar durante o hino nacional. A atleta não contou com o suporte do Seattle Reign, sua equipe, e foi criticada abertamente pela direção do clube. “É importante ter pessoas brancas apoiando as pessoas de cor também”, comentou Rapinoe, que também lembrou que os homossexuais, como ela, sofrem muito preconceito no país.

A ação de Kaepernick repercutiu também comercialmente. Positiva e negativamente. A camisa do quarterback, que disputou o Super Bowl XLVII, foi a mais vendida no mês de setembro, de acordo com a NFL. Mas houve quem tivesse prejuízo por se manifestar contra o preconceito. No jogo de abertura da NFL, entre Broncos e Panthers, no dia 8 de setembro, o linebacker Brandon Marshall, da equipe de Denver, ajoelhou-se durante o hino. A consequência: a CenturyLink e Air Academy Federal Credit Union cancelaram seus contratos de patrocínio com o atleta.

O fato, porém, não inibiu outros esportistas. No domingo seguinte, dia 11 de setembro, data dolorosa para os norte-americanos por conta dos ataques terroristas ocorridos 15 anos atrás, Kaepernick não protestou sozinho na rodada de abertura da temporada regular da NFL. Além de Reid, jogadores dos Patriots, Seahawks, Dolphins e Broncos se ajoelharam, juntaram os braços ou simplesmente levantaram o punho como fizeram John Carlos e Tommie Smith no pódio da Olimpíada da Cidade do México-1968.
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Olhos fechados para o racismo
A pouco menos de dois anos do Mundial da Rússia, não existe temor relacionado a atrasos de obras ou dificuldades para receber os turistas como houve no Brasil. O medo é que o preconceito estrague a festa da Copa. Que ao invés da receptividade encontrada no Brasil, os fãs de futebol se deparem com a homofobia, xenofobismo e racismo. Ainda mais após a Fifa não demonstrar mais se preocupar com o assunto.

O alerta para o racismo no país-sede foi ligado após um caso de outubro de 2013. O Manchester City visitou o CSKA em partida da Liga dos Campeões. Capitão da equipe inglesa, o marfinense Yaya Touré foi a vítima. Bastava ele tocar na bola para que as ofensas racistas ecoassem pelo estádio. Touré fez o juiz parar a partida e pediu uma providência. Inútil. 

Em entrevista coletiva, Touré prometeu organizar um boicote dos jogadores negros à Copa de 2018. “Se não nos sentirmos confiantes, não viremos para a Copa”, disparou. “Sei que estamos lutando contra o racismo, mas não somos crianças e precisamos que isso acabe imediatamente. A Uefa tem que reagir”, completou. A reação foi simplória: o clube teve que fechar parte do estádio durante outro compromisso da Champions como pena. Algo irrisório para um crime considerado tão grave nas notas oficias que a Fifa divulga.

ANTIRRACISMO
Houve, porém, o ensaio de uma atitude mais concreta. A Fifa decidiu criar o comitê antirracismo no mesmo ano. O objetivo era combater o preconceito e monitorar as denúncias contra a Rússia. Porém, em setembro deste ano, a entidade decidiu acabar com o comitê. Justificou afirmando que os objetivos foram alcançados. “Isso ocorre no momento em que há claras evidências de discriminação. O preconceito e o ódio estão aumentando nas cidades desenvolvidas, principalmente na Europa, mas também em outros locais do mundo. O futebol deve liderar o combate a essas intromissões”, declarou a Kick It Out, entidade inglesa que luta por igualdade no futebol.

92
incidentes de racismo na Rússia na temporada 2014/15

83
foram registrados nas duas temporadas anteriores

Episódios ocorridos nos gramados da Rússia

Roberto Carlos
Em 2011, quando jogava pelo Anzhi, da Rússia, o lateral esquerdo Roberto Carlos foi vítima de racismo por mais de uma vez. No primeiro episódio, em partida contra o Zenit, torcedores adversários mostraram uma banana para o jogador, insulto que resultou uma multa branda ao Zenit: R$ 16 mil. Na segunda vez, em jogo contra o Krylia Sovetov, torcedores atiraram bananas em direção ao pentacampeão mundial com a seleção brasileira. A agressão fez o lateral deixar o campo.

Cristopher Samba
Durante partida entre Anzhi e Lokomotiv Moscou, em março de 2012, o zagueiro congolês Cristopher Samba teve de aguentar insultos racistas durante toda a partida. Para completar o cenário de preconceito, no fim do jogo uma banana foi atirada em sua direção. Apesar dos ocorrido, Samba continuou no futebol russo e afirmou. "Nunca permitirei que a pequena comunidade de racistas me ofenda", disse ele, que agora veste a camisa do Lokomotiv.

Peter Odemwingie
Apesar de ser formado nas categorias de base do CSKA, o atacante Odemwingie não se sentia em casa quando vestiu a camisa do Lokomotiv Moscou em 2010. Segundo o atleta, sempre que ele tocava na bola era possível ouvir algum xingamento racista. Cansado da postura da torcida, Peter foi transferido para o West Bromwich, fato que foi comemorado pelos torcedores do clube russo com uma faixa polêmica. Além de ter escrito “Obrigado, West Brom”, ainda era possível ver o desenho de uma banana no meio da faixa.
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