Teatro

A memória em chamas

Patrimônio cultural que há anos enfrenta triste abandono, Teatro Valdemar de Oliveira é atingido por incêndio que deixa sala de espetáculos e acervo da biblioteca em cinzas

Publicado em: 08/02/2024 06:00

 (Rômulo Chico/ DP Foto)
Rômulo Chico/ DP Foto
Casa de espetáculos que por décadas encantou e formou público na cidade do Recife, o Teatro Valdemar de Oliveira amanheceu em chamas ontem. O corpo de bombeiros foi acionado por volta das 5 horas da manhã, enquanto moradores vizinhos faziam registros da intensa fumaça que tomou conta do local, fechado desde 2020 devido à pandemia e abandonado desde 2023, passando por invasões, furtos e depredações. A sala de espetáculos, já com seu teto destruído há vários meses, foi o principal foco do incêndio, que não deixou vítimas.
 
Além da sala de espetáculos, foi atingida também pelo incêndio a biblioteca Samuel Campelo (nome de um dos principais artistas do teatro pernambucano e fundador do grupo Gente Nossa, precursor do TAP), que continha textos e livros sobre o teatro, revistas estrangeiras, coleções, correspondências e enciclopédias e documentos da época do Nosso Teatro.
 
Localizado na Praça Oswaldo Cruz, a casa foi inaugurada com o nome de Nosso Teatro, em 1971, fundada pelo grupo Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP). O coletivo que deu à luz ao espaço e de importância inestimável para a cultura do estado através das décadas foi criado em 1941 pelo médico, escritor, ator e músico recifense Valdemar de Oliveira. Com o seu falecimento, em abril de 1977, o nome do equipamento cultural foi alterado para Teatro Valdemar de Oliveira no dia 23 do mês seguinte.
 
O TAP foi durante anos referendado por todo o Brasil pelo seu trabalho de profissionalização de atores e diálogo com múltiplas experimentações e inovações na cena teatral da época, mantendo as atividades da sua sede durante todas as últimas décadas desde a inauguração, mesmo enfrentando grandes desafios pelo caminho. Um deles foi um primeiro incêndio ocorrido em outubro de 1980, provocado por um curto-circuito na luz negra do palco e que começou pelas cortinas, se alastrando pela sala principal.
 
O espaço estava sendo mantido por seus 22 associados que, de acordo com a neta de Valdemar, Thiana Santos, não recebem verbas públicas. O grupo cultural João Teimoso, já atuante na capital há mais de 20 anos, entrou com pedido de tombamento em dezembro de 2022 – que entrou no Diário Oficial apenas em setembro de 2023. Quem assinou o pedido de tombamento foi Oséas Borba, diretor do Movimento Guerrilha Cultural e coordenador do João Teimoso.
 
“Estávamos na luta pelo tombamento, junto ao Governo do Estado, por meio da Fundarpe, e alertamos para a especulação imobiliária, com indicativos de que havia interesses no prédio, inclusive com a compra e derrubada da casa de um dos lados do teatro. Desde 2022 estamos acompanhando o processo sem qualquer devolutiva oficial”, relembrou Oséas. “A depredação e os roubos continuaram no que restava do prédio e nenhum órgão tomou providências para coibir. No ato público que realizamos em setembro do ano passado, ao microfone alguns pediram para que as cadeiras que até então estavam inteiras, fossem retiradas para um depósito, mas nada foi feito e em novembro estas mesmas cadeiras estavam rasgadas, destruídas de forma proposital e agora o incêndio aparece como culminância de um processo de descaso e abandono. O teatro pertence ao TAP nas escrituras, nos documentos,  mas é um bem do estado de Pernambuco, da memória de nosso povo”, completou em nota oficial.
 
Thiana Santos – que entrou para a associação do TAP em 2015, assumindo a Direção de Patrimônio até 2020, saindo do grupo no final do ano passado – se manifestou sobre o ocorrido. “Uma tristeza profunda... um coração doido, um sentimento de impotência e impunidade. Fiz o que estava ao meu alcance e foi uma luta diária para manter o teatro de pé. Peço perdão aos meus ancestrais e a todos que de alguma forma contribuíram para erguer o Nosso Teatro, que levou 10 anos para ser construído. Foram tantos que deram as mãos e trabalharam em prol da arte de fazer teatro em benefícios de tantos necessitados. Uma linda história, que não será apagada, pois o acervo principal do TAP, está a salvo aqui em casa e na casa de minha irmã Maria Adélia”, lamenta.
 
“Pernambuco não pode perder mais um Teatro. E quando se trata do Valdemar de Oliveira, a dimensão é muito maior. Desde 1971 que ele acolhe a produção artística e é uma das principais casas de espetáculos do país. Um teatro símbolo da comunidade, que durante anos manteve uma programação regular, de qualidade. Nossa casa de acolhimento e trabalho”, destacou o diretor de teatro José Manoel Sobrinho, que durante anos também contribuiu pelo tombamento do equipamento.
 
TOMBAMENTO
A arquiteta de patrimônio, Karina Monteiro, explicou que o tombamento, na prática, não traria tantos efeitos positivos para o equipamento, pois, no caso do Valdemar de Oliveira, o funcionamento do local é o mais importante para a comunidade artística do que a matéria em si, que, de fato, pouco restou. "O tombamento é um instrumento que incide diretamente na matéria. Então o Estado vai ficar regulando a preservação daquilo, e não o funcionamento daquilo, o uso, a apropriação, que é o que de fato importa, né? Então eu acho que, para essa comunidade, o que importa é o teatro estar vivo. Pouco importava se a fachada dele ia ser mudada. Arquitetonicamente poderia ser mudado tudo. Então se fizerem um novo Valdemar de Oliveira, completamente novo, entregar para a comunidade, é muito melhor do que pensar em conservar o que sobrou dele".

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