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CRÍTICA | MÊS DO HORROR

Em 'Noites Brutais', aclamado terror lançado no Star+, os monstros não são aquilo que parecem

Publicado: 27/10/2022 às 14:00

/Dinâmicas de gênero e subversão de expectativas pautam o chocante e surpreendente terror, que demanda ser visto com o mínimo possível de informações sobre a trama. Divulgação / 20th Century Studios

/Dinâmicas de gênero e subversão de expectativas pautam o chocante e surpreendente terror, que demanda ser visto com o mínimo possível de informações sobre a trama. Divulgação / 20th Century Studios

A noite não começa das mais agradáveis para Tess (Georgina Campbell), que reserva o aluguel de uma casa em Detroit devido a uma entrevista de emprego e, ao chegar no local, descobre que já há outra pessoa lá dentro. Keith (Bill Skarsgard), um rapaz jovem e solícito, oferece o seu quarto a ela e afirma que pode dormir no sofá para que, no dia seguinte, eles liguem para o serviço de Airbnb para esclarecer o mal-entendido. Mesmo desconfiada, ela aceita a oferta. Na madrugada, um barulho alto ecoa pela sala, portas aparecem abertas e, mais importante, o porão dá acesso a um interminável túnel que esconde o segredo grotesco sobre aquele lugar.

Já disponível no catálogo do Star%2b, Noites brutais (uma tradução ingrata para o excelente título original Barbarian, ou “Bárbaro”) é um projeto original totalmente fora da agenda que vem ganhando notoriedade desde o seu lançamento nos cinemas norte-americanos. Escrito e dirigido pelo estreante Zach Cregger, mais conhecido pelo seu trabalho como comediante, o longa funciona como um jogo de desconstrução de sua própria premissa e propõe o desafio de desdobrar seu mistério, tal qual a limitação do cenário, num imprevisível leque de possibilidades de horror que demora até o terceiro ato para colocar todas as cartas na mesa. O que começa como um aparente thriller de maníaco revela na segunda metade que, ao menos aqui, nada - nem ninguém - é aquilo que parece.

A entrada em cena de novos personagens dá ao caráter já bastante cínico de Noites brutais um considerável senso de farsa, como se ele utilizasse a expansão surpreendente de sua história como uma brincadeira de adivinhação para chegar no verdadeiro terror que, ao final, pretende discutir. Filmando frequentemente com lentes grandes-angulares, que deixam tudo em foco, distorcem as laterais da imagem e criam um campo de visão mais amplo por onde o perigo possa aparecer, o diretor estabelece, assim, um distanciamento clínico de alguns dos seus personagens - sobretudo aqueles que aparecem em inserções paralelas ao longo da projeção - e subverte a associação natural que o pré-conhecimento de alguns atores por parte do espectador pode gerar.

Mesmo antes das intensas curvas narrativas, o filme expõe seu enunciado através da relação de desconfiança entre a protagonista e o estranho, numa dualidade de gêneros (masculino e feminino) reveladora sobre como os medos e monstruosidades se alternam a partir de simples mudanças no ponto de vista - e é a partir dessas inversões que ele tira muito do seu mordaz senso de humor. Zach Cregger faz um malabarismo descomunal para dar credibilidade às ações dos personagens e, ainda que alguns diálogos soem didáticos no ato final, a coesão do elenco para dar crescendo ao pânico e vazão à pontual comicidade é irrepreensível.

A obsessão pela renovação e pelo fator surpresa inevitavelmente interrompe o impacto sensorial de algumas sequências e, à medida em que o espectador se aproxima mais e mais da fonte de ameaça, parte do pavor genuíno proporcionado anteriormente se esvai e é substituído quase que por uma empatia irracional. Isso não se torna um problema em Noites brutais porque o seu apelo não está apenas nos arrepios provocados pelo mistério e seu monstro vai muito além de uma criatura desfigurada que surge no escuro. Não pode haver terror maior do que descobrir porões, túneis e masmorras escondidos sob a superfície de civilidade.

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