CRÍTICA
Elegante e grotesco, 'Crimes do Futuro' concilia as distintas fases do cinema de David Cronenberg
Por: André Guerra
Publicado em: 08/08/2022 16:16 | Atualizado em: 08/08/2022 16:42
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| Já em cartaz nos cinemas, filme distópico marca retorno do diretor canadense ao horror e à ficção científica após mais de duas décadas. Neon/Divulgação. |
Mais curiosa do que as transformações corpóreas emblemáticas dos seus filmes é a própria metamorfose da obra de David Cronenberg através de seus 22 longas. Conhecido pela mescla de ficção científica com horror corporal de trabalhos como Videodrome, A mosca e Gêmeos: Mórbida semelhança, o cineasta canadense se revelou ao longo das décadas capaz de abordar temas totalmente fora de sua curva inicial - a tara por acidentes de carro em Crash: Estranhos prazeres, a máfia russa em Senhores do crime, a psicanálise no início do século 20 em Um método perigoso e os absurdos do mundo das celebridades em Mapa para as estrelas. Retornando ao horror após mais de duas décadas com Crimes do futuro, em cartaz, Cronenberg parece chegar a uma conciliação entre suas idiossincrasias como diretor de gênero e a sobriedade formal de suas obras mais recentes.
Ambientado num futuro de aparência pós-apocalíptica no qual pessoas não sentem dores físicas e passam a desenvolver novos órgãos, o longa segue uma dupla de artistas performáticos (Viggo Mortensen e Léa Seydoux) que fazem apresentações públicas de cirurgias e remoções, reunindo seguidores obcecados, como uma mulher misteriosa do departamento de registros de órgãos do governo (Kristen Stewart). Os cortes e mutilações se transformam literalmente em prazer e o enredo paulatinamente submerge o espectador num submundo sombrio em que a cirurgia se tornou o “novo sexo”, como verbaliza uma das personagens.
Crimes do futuro possui um universo cheio de regras que nunca são inteiramente apresentadas à plateia. Pontuais diálogos expositivos estabelecem relações e esclarecem especificidades da distopia, enquanto explicações práticas da formação daquele mundo ficam no máximo subentendidas. Aparelhos antigos de TV contrastam com a realidade futurista e elementos mais abertos da direção de arte contribuem para um anacronismo visual que domina toda a projeção. Afinal, assim como em EXistenZ, última incursão de Cronenberg na ficção científica, toda a tecnologia presente aqui é orgânica, tátil e não raro repulsiva, como os controles que mais parecem anfíbios.
Ainda que famosa pelas cenas chocantes de mutação e violência, a filmografia do cineasta nunca lidou frontalmente com a discussão sobre o corpo humano. Idealizado originalmente há cerca de 20 anos, mas muito conectado à atual fase do seu autor, Crimes do futuro ocasionalmente funciona como filme tese de Cronenberg sobre seu método e suas principais obsessões; os personagens estão constantemente debatendo o significado dos corpos e, mais importante, performando para os outros (e para o público) as revelações conceituais das anomalias, buscando a beleza presente nas mais perturbadoras imagens.
Não deixa de ser notável como, justo na hora de lidar diretamente com o que sempre foi seu projeto de cinema, Cronenberg joga todo o excesso de bagagem pela janela para se concentrar no que há de essencial na encenação, na movimentação animalesca de alguns dos atores e na inflexão peculiar de seus diálogos. A contenção do choque usual dá lugar a pequenos momentos ritualizados em que a resolução cristalina da estética digital expõe a textura da carne sem filtro ou exagero. Crimes do futuro é uma simbiose da atmosfera de submundo sujo e sem leis de Crash com o minimalismo e a elegância estilística que marcou a carreira do diretor no século 21. A união de duas fases tão distintas e igualmente geniais dificilmente teria outro resultado.
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