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Trabalhadores do Cinema São Luiz vivem fortes emoções em seu retorno

Publicado: 23/02/2022 às 09:00

/Foto: Paulo Paiva / DP

/Foto: Paulo Paiva / DP

 No começo da tarde de ontem, os funcionários do Cinema São Luiz estavam reunidos no espaço como poucas vezes desde o fechamento, em março de 2020. Tratavam dos ajustes dos últimos detalhes para a tão aguardada reabertura, marcada para amanhã. Da bilheteria à cabine de projeção, todos os espaços estavam de alguma forma ocupados por trabalhadores, que vêm realizando uma maratona de serviços nos últimos 15 dias.


Após tanto tempo frequentando tão pouco aquele lugar considerado por eles como segunda casa, o empenho da volta foi impulsionado pela empolgação de abrir as portas. Foi um período turbulento de mudanças na vida do cinema da Rua da Aurora, incluindo a triste perda de seu programador e guardião, Geraldo Pinho. Mas chegou a hora de uma mudança feliz, que será a retirada da mensagem “em breve estaremos juntos” dos letreiros vermelhos da fachada. Chegou o momento do reencontro com um dos principais pontos de resistência cultural do Centro do Recife.

Foram dois anos fechados, que impactaram a rotina e o emocional dos trabalhadores. No começo, eles estavam completamente isolados do espaço. Com uma flexibilização dos protocolos, puderam começar uma tímida rotina de visitas ao cinema para a manutenção da estrutura e dos equipamentos. O projecionista Arthur Abdon viveu 12 dos seus 30 anos de vida trabalhando no interior do cinema, indo de porteiro e bilheteiro ao cargo de projecionista, hoje especialista nos equipamentos digitais. Se afastar desse lugar que o acolheu por tanto tempo acabou sendo um período de melancolia.

“Depois de cinco ou seis meses sem pisar aqui, começamos a vir aos poucos, para ligar os equipamentos, algo necessário de se fazer semanalmente. Era uma sensação grande de tristeza, ligar o projetor e passar filmes para ninguém. Também tivemos contato com histórias de espectadores frequentes que faleceram, muito triste pensar ‘aquele cara vinha sempre e não vai vir mais’. Essa tristeza e essa incerteza da volta foram muito difíceis”, relata Arthur, que também se vê tomado por fortes sentimentos nesse retorno. “Somos uma equipe que é quase como uma família e que todo mundo ama o trabalho. Isso é muito perceptível para quem nos conhece. Estamos nessa mistura de emoção, sentindo as ausências, mas felizes em voltar.”

 

Arthur Abdon passou por momentos de angústia ao passar filmes para ninguém 


Foi um sofrimento emocional que encontrou consonância na própria estrutura do cinema. Durante o período, Gustavo Coimbra, gestor do São Luiz, relata ter encontrado infiltração, mofo, problemas no telhado e, em especial, no coração do cinema: o projetor digital, que precisou ser isolado por um período até a realização de uma manutenção feita por um técnico vindo de São Paulo, que trocou uma série de mecanismos internos. Reformas foram feitas, e os detalhes estão sendo ajustados para a reabertura, inicialmente com 300 lugares disponíveis e seguindo os protocolos sanitários.

“Foram aparecendo e se acumulando os problemas de maior escala. Com a flexibilização, nos mobilizamos para fazer tudo o que estava ao nosso alcance. O projetor mesmo passou meses enrolado em papel filme para não sofrer danos maiores, em especial com a umidade e a maresia. As coisas foram melhorando, tivemos a vinda do técnico, fizemos os consertos, reparos de ar-condicionado e da estrutura, para articularmos a reabertura. Estamos vendo outros cinemas e aprendendo a funcionar dessa nova forma. Está sendo muito prazerosa e emocionante essa volta, com tudo lindo após um período tão conturbado”, relata Coimbra. Agora, volta a se reunir a família São Luiz, formada por João Bosco, Miguel Tavares, Arthur Abdon, Arthur Frederick, Eliane Muniz, Bruno Alves, Joyce Suelen, Wilma, Maria das Graças, Inoe, Vanessa, Inaldo Inácio, Alexandre Amorim, Luiz Gustavo, Adriano Mota e Edmilson.

 

Gustavo Coimbra, gestor do São Luiz, relata problemas de grande escala que precisaram ser resolvidos 

 

Geraldo Pinho eternizado no São Luiz

 

Entre os trabalhadores do cinema, é unanimidade que ninguém enchia mais os olhos com a possibilidade de retorno das atividades do que Geraldo Pinho, lendário programador do cinema falecido em novembro passado. A sua luta por um circuito de cinema plural e acessível na capital pernambucana cria um legado para os próximos anos do espaço. Luiz Joaquim, discípulo de Pinho e atual programador do equipamento, se empenha em fazer do futuro do São Luiz uma continuação das batalhas do mestre. 

 

“Essa é uma sala que tem poucas no mundo, de quase mil lugares, é o maior desafio para qualquer programador de cinema. Lotar essa sala é quase que uma fórmula mágica. É uma excitação voltar a função que tenho paixão e um frio na barriga para dar conta bem como Geraldo dava. Ele foi professor e ele tinha uma energia pedagógica intrínseca, no sentido de apresentar para as pessoas bom cinema. Fazer minimamente como ele fazia é continuar esse trabalho educador, sendo essa uma casa pública, de maneira acessível. Tendo em mente que não é porque as pessoas são modestas que não podemos ser audaciosos nessa programação. Ele dizia que o São Luiz não é um cinema de rua, é de calçada, ele vai conquistando as pessoas que passam aqui na frente”, elabora Luiz Joaquim. 

 

Luiz Joaquim assume a programação dando continuidade ao legado de acessibilidade e pluralidade de Geraldo Pinho 

 

A primeira sessão das segundas-feiras agora recebe o nome de Sessão Geraldo Pinho, com preço popular de R$ 5. Funcionários de longa data do São Luiz estão todos vivendo uma certa confusão sentimental com a felicidade da reabertura e a estranha sensação de não ter Geraldo ali nesse momento. “É uma coisa que a gente ainda tá se acostumando. Ontem fizemos os testes dos filmes, recebemos um filme em homenagem a ele e todos nos emocionamos. Luiz Joaquim, que era um grande amigo dele, vai trazer sua personalidade, mas ele deixa claro que não quer mudar o perfil que Geraldo construiu”, afirma Gustavo.

 

“Ontem eu tive um sonho com Geraldo e ele estava muito feliz. Acho que essa reabertura era o dia mais esperado do resto da vida dele, queria muito que ele estivesse presente. Mas essa emoção, tanto para ele, quanto para mim e para a equipe, que temos como uma família, amamos o trabalho. Estamos nessa mistura de emoção, uma certa tristeza por essa ausência, mas feliz em saber que tudo vai voltar como ele sonhava”, conclui Arthur, com lágrimas nos olhos. 

 

PROGRAMAÇÃO DE RETOMADA 

 

O Cinema São Luiz reabre nesta quinta-feira, às 14h30. Já às 19h30, será realizada uma homenagem a Geraldo Pinho, seguida da sessão de A Ilha de Bergman, de Mia Hansen-Love. Na sexta-feira, o longa pernambucano Seguindo Todos os Protocolos, de Fábio Leal, terá sua primeira sessão presencial. No dia seguinte, será realizada a pré-estreia nacional de Um Herói, dirigido pelo aclamado diretor iraniano Ashgar Farhadi, vencedor do prêmio do júri no último Festival de Cannes. 

 

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