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Crítica: Matrix usa seus próprios ícones para retorno estranho e poderoso
Publicado: 22/12/2021 às 14:13
'The Matrix Resurrections' está em cartaz (Warner Bros./Divulgação)
Pouca coisa na arte do século 21 teve o tamanho que tem Matrix e seus braços para além da trilogia de filmes iniciada em 1999. O legado do universo concebido pelas irmãs Wachowski trouxe impactos nas formas de comunicação, no linguajar político e filosófico e, sobretudo, na estética sci-fi e do cinema contemporâneo como um todo. De lá pra cá, os filmes e derivados foram destrinchados, virados ao avesso, estudados e debatidos aos montes. Dessa discussão, surgiram situações que vão do uso de seus elementos narrativos no vocabulário de um conservadorismo conspiracionista a um cativante debate sobre como sua narrativa funciona enquanto uma alegoria sobre a vivência de pessoas trans, condição inclusive de suas realizadoras.
Mas por que então, mais de duas décadas depois, voltarmos à Matrix? O que mais se pode extrair do embate técnico-filosófico entre Neo e os humanos conscientes contra as máquinas? Atualizar ideias e discussões para os dias de hoje? Reinventar os ícones visuais e narrativos que criou e consolidou com tanta força na cultura pop? Apenas promover um fácil reencontro pautado pelo sentimentalismo da nostalgia, tão em voga em Hollywood?
É ao abraçar todas essas perguntas e não necessariamente trazer respostas que The Matrix Resurrections, dirigido por Lana Wachowski e já em cartaz, é um filme tão estranho, quanto magnífico, incorporando mais uma vez o mistério, o espetáculo e as ideias que fizeram a franquia ter a grandeza que possui.
Quando retornamos ao universo neste novo filme, não encontramos de cara Neo, mas Thomas Anderson. Ele é um designer de jogos e criador de todas as histórias e imagens do que conhecemos como Matrix, seu mais popular game, que coloca todos as narrativas dos filmes anteriores como apenas uma invenção artística sua. Contudo, Anderson possui supostos transtornos psicológicos que o fazem acreditar que sua criação é mais realidade do que ficção e que sua história de vida talvez não seja a de suas memórias, mas sim a das suas fabulações. Esse limiar entre delírio e lucidez passa por intensas mudanças quando um programa seu parece se libertar para reconectá-lo com a verdade.
É a partir dessa narrativa onde a própria diegese é colocada na tensão entre o binarismo real/ficção que Wachowski faz do novo Matrix um filme que vai ter uma parte fundamental de seu discurso em comentar Matrix. O longa é permeado constantemente por flashbacks das produções anteriores, discursos diretos sobre suas conhecidas imagens e histórias e, por mais que abuse de um didatismo nesse sentido, se nega a dar respostas definitivas e de se inclinar entre esses binarismos.
É uma atitude que a franquia sempre carregou em si, de se negar a ser sobre algo, de exorcizar o maniqueísmo ancestral entre forma e conteúdo da arte, de não conceber ideia e espetáculo como duas coisas que precisam estar distintas entre si.
De posse de todo esse arsenal estético, o novo filme se utiliza dessa exacerbação do reconhecimento de seus ícones para mais uma vez construir uma obra de solo muito incerto, que nos faz entender as coisas apenas para voltarmos a não entender nada. O mistério é conservado como parte instigante da experiência, mas aqui construído não pela ocultação de informações, mas pelo grande volume delas, uma clareza tão profunda que confunde e que é típica dos nossos tempos.
Nessa estranheza bem cimentada, Matrix Resurrections se permite passear por tantos tons dramáticos distintos com um senso muito grande de unidade. Consegue soar paródico, farsesco, mas também épico, grandioso e pulsante, indo além de uma autoanálise boba.
Estamos lidando com uma das vozes do cinema contemporâneo que melhor soube se apropriar das possibilidades técnicas do digital para criar filmes que emanam vivacidade e tesão a partir das cores, das luzes, do ritmo e da manipulação do espaço e tempo. E está tudo de volta, não com a pretensão de estabelecer novos ícones, mas de resgatar o que talvez tenha sido esquecido no blockbuster contemporâneo.
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