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Livro 7, livraria recifense que já foi a maior do Brasil, completaria 50 anos em 2020

Publicado em: 19/10/2020 13:17 | Atualizado em: 19/10/2020 13:17


Em formato de L, sem balcão e com livre circulação, a Livro 7 foi um dos maiores redutos culturais e políticos de Pernambuco. (Foto: Acervo Pessoal)
Em formato de L, sem balcão e com livre circulação, a Livro 7 foi um dos maiores redutos culturais e políticos de Pernambuco. (Foto: Acervo Pessoal)
 
A Livro 7 era uma festa, como bem definiu o escritor Raimundo Carrero. Mais do que uma livraria no bairro da Boa Vista, ela foi por cerca de 30 anos um ponto de atração magnética da cultura do Recife. Localizada na Rua Sete de Setembro, era o núcleo de onde outros espaços da vida cultural orbitavam ao redor - entre eles, o Beco do Barato, o bar Mustang, o cinema Veneza e o Teatro do Parque. O que começou como um pequeno espaço administrado pelo livreiro Tarcísio Pereira se tornou um marco para Pernambuco. E anos depois para o Brasil: foi a maior livraria nacional em tamanho e exemplares (60 mil), reconhecida pelo Guinness book. Em 2020, a Livro 7 completaria 50 anos. Seus ecos continuam simbolicamente e afetivamente. Muito além do tamanho físico, foi palco de grandes lançamentos, formação cultural e política e efervescência da cidade, numa época de um país podado pela censura editorial da ditadura militar.

Uma sala de 20 m2. Esse era o tamanho quando a livraria foi inaugurada em 27 de julho de 1970. Sua história está ligada aos tempos de comércio urbano pré-shoppings, quando Tarcísio teve a primeira formação na Livraria Imperatriz, capitaneada por Jacob Berenstein. "Assumi como encarregado e já tinha o pensamento de abrir a minha livraria. Sem balcão, porque eu odiava balcão. Era uma coisa comum naquela época, uma barreira que separava o público do livro. Eu achava muito chato o cliente de longe, pedindo o livro, sem nenhuma mágica que tivesse diretamente acesso", conta Tarcísio, em entrevista ao Viver. Ele ficou na Imperatriz de 1964 até 1969. Quando saiu, decidiu abrir a Livro 7. Sem balcão, claro.

No primeiro prédio, existia um pequeno corredor, que Tarcísio decidiu montar para eventos como, por exemplo, um festival de Super 8 com Celso Marconi, Jomard Muniz de Britto e Fernando Spencer, e torneios de xadrez, sempre aos sábados. Em 1974, a livraria se mudou para um casarão, onde cresceu até o ápice, quando dobrava o quarteirão em um formato de L... de livro.

O modelo de Tarcísio é o que conhecemos hoje nas livrarias, de livre trânsito entre as prateleiras, com restaurante e poltronas para leituras, algo que na época impulsionou a Livro 7. "O pessoal começou a criar uma coisa de ‘lançamento tem que ser na Livro 7’, e a mídia sempre apoiou muito. Era frequentada por várias pessoas, pela classe artística em peso e também jornalistas. Eu dava liberdade para o pessoal pegar o livro e ver se estava interessado em comprar", explica. "Eu ensinava a quem vendia para não pegar o livro do cliente direto, mas mostrar a sessão, onde ele via outros autores e se interessava em comprar outros."

Com a Livro 7, lojas de discos, artesanatos e plantas de interiores, cervejaria com 600 cadeiras e miniteatro, o prédio foi uma galeria cultural da região, um espaço colaborativo e democrático, inclusive com linha de crédito aos estudantes. "Uma coisa que atraía era o Cartão Cultural (o CrediSete). Quando chegava o final do mês, eram filas e mais filas no caixa", pontua Tarcísio.
 
Palco de lançamentos 
Não se pode falar da Livro 7 sem destacar seus lançamentos. Desde a presença de gigantes nacionais como Osman Lins, Gilberto Freyre, Ariano Suassuna, João Cabral de Melo Neto e Ferreira Gullar até o uruguaio Eduardo Galeano. Quem bem definiu o status da livraria foi  Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1988, que, em visita, pontuou: "Aqui em Pernambuco, sempre foi diferente do resto do país. Aqui encontrei três partidos: MDB, Arena e Livro 7".
 
A livraria impressionou até o "popstar da literatura" Sidney Sheldon. (Foto: Arquivo Pessoal)
A livraria impressionou até o "popstar da literatura" Sidney Sheldon. (Foto: Arquivo Pessoal)
 
A visita mais memorável foi a do escritor norte-americano Sidney Sheldon, naqueles tempos o maior best-seller mundial. O convite surgiu após contato de Tarcísio com o agente literário do autor de O outro lado da meia-noite na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, e ao tomar conhecimento de uma turnê de Sheldon pela América Latina. "Esse lançamento foi o maior do Brasil, só nessa noite vendeu 940 exemplares. O pessoal também trazia livros já lidos de casa. Ele foi um verdadeiro gentleman. A mulher dele se levantou duas vezes pra filmar o tamanho das filas", relembra o livreiro.

A noite de filas para autógrafos no fim da década de 1980 quase não aconteceu. Segundo Tarcísio, ao chegar em Porto Alegre, o escritor teve receio de vir ao Recife por causa da violência. Com o lançamento já anunciado e alta expectativa criada, a noite foi salva por um esforço coletivo. "Eu montei um esquema que funcionou muito bem, através de fax com umas matérias e notas que tinham saído na mídia. No dia seguinte, ele ligou para a editora e chegaram a um acordo: viria ao Recife num voo comercial e voltaria de jatinho, e alguém teria que bancar. ‘Eu disse a ele que já tava bancado’, mesmo sem saber quanto custaria", comenta, aos risos.

Sidney foi recebido com seis faixas - encomendadas por Tarcísio, vale frisar - que o elogiavam e davam boas-vindas. "Eu sei que o motorista me contou depois, que sempre desacelerava perto das faixas para ele ler. A cada faixa, o escritor vibrava no banco de trás do carro."
 
Casa de grandes artistas
Justamente por ser uma porta aberta para artistas e intelectuais, a Livro 7 foi a casa de três gerações de escritores, e Tarcísio Pereira foi o patrono. No início dos anos 1990, inclusive, ele foi congratulado pela Academia Brasileira de Letras com o Mérito Cultural pela Divulgação da Literatura. "Tive a honra de receber na livraria lançamentos da geração 1945, 1965 e 1980", orgulha-se. Um desses lançamentos foi com João Cabral de Melo Neto, que tomado por uma de suas clássicas enxaquecas, estendeu uma apresentação de Morte e vida severina em uma noitada, acompanhado de seu uísque - que, segundo Tarcísio, foi remédio certo para o fim da dor de cabeça.

Exposições e performances com nomes como Paulo Bruscky, Cavani Rosas e Katia Mesel, "palinhas" de Geraldo Azevedo, Alceu Valença e Robertinho do Recife com o violão sempre à disposição dos frequentadores. São incontáveis momentos memoráveis. Outra empreitada inesquecível foi a noite em que Tarcísio juntou, em um bate-papo, Raimundo Carreiro e Marcus Accioly, dois dos maiores nomes da literatura pernambucana. "Foi uma loucura de gente na Livro 7. Tanto que, do nada, apareceu um cara do Detran para falar comigo. Veio reclamar que o evento engarrafou a Rua do Riachuelo."
  
Essa relação com os escritores era expressa não só em presenças físicas, mas nas paredes da livraria, repletas de retratos assinados. Era um ponto em que o pernambucano poderia se reconhecer culturalmente, como pontua o economista e escritor Jacques Ribemboim. "A Livro 7 inovou em muitos aspectos, mas acima de tudo, tornou-se um símbolo de pernambucanidade. Ali, o público se via refletido nos autores que estavam expostos em suas centenas de metros de estantes e gôndolas."

Troça de Carnaval
Entre os mais conhecidos e irreverentes legados da livraria, está o bloco carnavalesco Nóis Sofre… Mas Nóis Goza. Dois anos mais novo que o Galo da Madrugada, em um tempo de censura e de um carnaval ainda dominado pelos clubes, a troça começou a partir de uma brincadeira. "No Carnaval de 76, um grupo de poetas da geração de 65 pegou uma toalha de mesa e uma vassoura para fazer de estandarte e saiu até a Guararapes. Ficaram bebendo ali e, quando apareceu uma troça, um folião soltou: ‘Tem que brincar mesmo. Porque nóis sofre, mas nóis goza'", comenta Tarcísio.
 
Tarcísio Pereira pretende lançar neste ano, pela sua editora, um livro de memórias da livraria. (Foto: Peu Ricardo/DP)
Tarcísio Pereira pretende lançar neste ano, pela sua editora, um livro de memórias da livraria. (Foto: Peu Ricardo/DP)
 
 
Um frequentador histórico da livraria e do bloco é o ilustrador Lailson de Holanda. Desde a primeira fase da Livro 7, o artista encontrava no espaço um reduto de liberdade e criação. "Todos os meus livros até o fechamento da Livro 7 foram lançados lá. Na parte de trás tinha um palco em que fizemos muitos shows do Papa-Figo, que começou como um jornal humorístico e virou uma banda satírica formada por mim, Teles, Clériston e Bione. A vida acontecia ali", pontua.
 
Reverberações da Livro 7 
A Livro 7 teve anos prósperos e chegou a abrir filiais em Alagoas, Paraíba e Ceará. Mas a instabilidade econômica e a expansão do modelo de livrarias em shoppings a fez encerrar as atividades no ano 2000, após três décadas de funcionamento. "O público começou a debandar para shopping, então começou a cair meu movimento. Eu tinha filial em Fortaleza, João Pessoa, Campina Grande e Maceió. Tiveram o Plano Collor e também a onda de imprimir livros. Mas muito também da própria decadência do Centro da cidade. A história da Livro 7 está imbricada a ele", comenta Tarcísio.
 
 
Em 2002, Tarcísio abriu, em parceria com o amigo Belarmino Alcoforado, a editora Livro Rápido. "Era de um grande amigo meu. Começamos a conversar, e ele, mostrando as máquinas, foi falando que imprimia faturas no fim do mês. Eu disse: 'Então vamos imprimir livro'". Em 2013, o livreiro criou a Tarcísio Pereira Editor, conciliando com as atividades como presidente do Conselho Editorial da Cepe Editora. Tarcísio Pereira pretende lançar neste ano, pela sua editora, um livro de memórias da livraria. Ele também realiza lives literárias periódicas no Instagram (@tarcisiopereira.7) e gerencia o grupo Amigos da Livro 7, no Facebook, onde admiradores compartilham memórias vividas no espaço.
 
A livraria foi fruto de tempos conturbados. "O mundo editorial sofreu com a censura, e muitas vezes recebi a Polícia Federal para depor. Felizmente, nunca tive maiores violências, fora a psicológica. A livraria cresceu apesar disso e das dificuldades financeiras." Do morador da Boa Vista, do estudante do Ginásio Pernambucano que aprendeu na Livraria Imperatriz a amar os livros, surgiu uma gigante que, com a megalomania recifense, soube ser a casa de tantos artistas. Tarcísio e Livro 7 deixaram a marca na cidade e um carinho entre os recifenses que o tempo não apaga.
 

 
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