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Black Is King: 'Passou da hora de podermos falar por nós', diz pesquisador pernambucano

Publicado em: 06/08/2020 14:09 | Atualizado em: 06/08/2020 14:14

 (Foto: Parkwood Entertainment/Divulgação e Marcela de Queiroz/Divulgação)
Foto: Parkwood Entertainment/Divulgação e Marcela de Queiroz/Divulgação

Como todo lançamento de Beyoncé nesta década, o filme musical Black is King levantou inúmeras discussões na imprensa e nas redes sociais. Disponível na plataforma Disney+, o longa reencena a narrativa do clássico O Rei Leão enquanto celebra a ancestralidade negra e estéticas do continente africano por uma ótica pop. No Brasil, o lançamento levantou uma controvérsia em particular por conta de um artigo da historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz publicado na Folha de S. Paulo no último domingo (2), intitulado Filme de Beyoncé erra ao glamorizar negritude com estampa de oncinha. "Quem sabe seja hora de Beyoncé sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez, e em outro sentido", diz o trecho final do texto, que critica o imaginário de uma "África idílica" no filme.

Assim, iniciou-se um amplo debate que refletiu sobre temas já discutidos nos últimos anos, como legitimidade e local de fala. Poderia uma mulher branca julgar negativamente o trabalho de uma artista negra que celebra suas ancestralidades? Lília foi criticada por diversos intelectuais, escritores, celebridades e influenciadores que compõem o movimento negro e a luta antirracista. "Errei e peço desculpas aos feminismos negros e aos movimentos negros com os quais desenvolvi, julgo eu, uma relação como aliada da causa antirracista. Assumo minha responsabilidade pelo artigo e não pretendo vencer qualquer discussão", escreveu a historiadora na última segunda-feira.


Em 31 de julho, dois dias antes do artigo de Schwarcz vir a público, o pernambucano Rafael de Queiroz apresentava a defesa da tese de doutorado FOGO NOS RACISTAS! Epistemologias negras para ler, ver e ouvir a música afrodiaspórica, pesquisa realizada na UFPE, sob orientação do professor Thiago Soares. O trabalho reúne epistemologias de autores negros como Paul Gilroy, Tsitsi Ella Jaji, bell hooks, Abdias do Nascimento, entre outros, que auxiliam na leitura, interpretação e crítica de produtos midiáticos idealizados por artistas negros, sejam canções, videoclipes, filmes e até álbuns fonográficos.

"A partir da minha autodeclaração como negro, comecei a pesquisar cada vez mais sobre as relações raciais e a cultura negra, para entender meu lugar no mundo e também poder me defender do racismo. Isso gerou também a busca por um sentido diferente dentro da academia, pois esse é um lugar hostil a pessoas negras, com currículos brancos e eurocêntricos", diz Rafael, em entrevista do Diario.

O pesquisador assumiu um compromisso político de usar o máximo de autores africanos ou da afrodiáspora. No trabalho, ele analisa produtos de artistas como Childish Gambino, Emicida, Xênia França, Rincon Sapiência, entre outros. "Nesse processo de epistemicídio, a busca pelos autores foi bastante difícil, pois não se trata comumente do assunto no nosso campo. Os professores não são capacitados para falar sobre raça e racismo, nem tampouco há um acervo minimamente satisfatório dentro das bibliotecas do campus." Confira alguns tópicos da conversa:

Epistemologias negras para a cultura pop
No caso de produtos midiáticos de autoria negra, que é o caso da minha pesquisa, vemos que os artistas trazem narrativas sofisticadas e cheias significados, que podem crescer e se complexificar a partir de um olhar enegrecido. Por exemplo, eu conecto clipes de rappers para falar sobre violências sobre corpos negros e o medo que negros podem desenvolver a partir de um terror causado pela branquitude e suas armas de poder. Para isso, uso uma miríade de autores e conceitos diversos, dentre os quais: Abdias do Nascimento e sua conceituação em torno do genocídio do negro brasileiro, Achille Mbembe e a necropolítica, Fanon e a irracionalidade branca e bell hooks falando sobre o medo que sentimos diante da ameaça branca, dentre outros. Também uso conceitos de ancestralidade, espiritualidade, mulherismo africana, afrofuturismo e sankofa para interpretar clipes da cantora Xênia França, todos vindouros de saberes negros. Já em outro capítulo, analiso uma trilogia de videoclipes do rapper ganês Blitz the Ambassador utilizando o Orixá Exu como teoria, junto com o conceito de Stereomodernism, desenvolvido pela pesquisadora Tsitsi Ella Jaji, do Zimbábue.

O episódio de Lilia Schwarcz
Na maioria dos meios, a autora branca é considerada uma aliada da negritude. Ela construiu sua legitimidade em torno do que chamamos de negro tema, ou seja, quando pesquisadores brancos insistem em nos tematizar culturalmente, socialmente e nos demais aspectos. E apesar de Lilia ter uma pesquisa que parece comprometida com o antirracismo, ela é uma mulher branca, de classe alta, dona de editora e professora da USP, ou seja, ela fala de um lugar de poder. Dessa forma, ela não poderia escapar, mesmo se quisesse, da insígnia da branquitude e do racismo estrutural, onde operou com soberba e arrogância. Já passou da hora de podermos falar por nós e não sermos mais objetos do olhar branco e de sua análise, mas os sujeitos de nossa própria cultura.

A autoestima e a arrogância de pessoas brancas são impressionantes, porque ela faz afirmações com muita certeza, como a de que jovens negros politizados de agora não iriam se identificar com a obra da artista, negando a pluralidade da experiência negra e se colocando como representação desse povo. Ela também mandou Beyoncé "sair da sala de jantar", algo que me soa como uma sinhá dando ordens a uma mucama e isso é muito autoritário. Ao meu ver, de modo geral, ela faz uma análise superficial e demonstra que não tem os códigos culturais para interpretar várias cenas do álbum visual. Para ela há somente uma África idílica ali e se formos adensar a leitura, vamos perceber significações muito mais profundas. Então, ela está subestimando uma das mais relevantes artistas negras da história, assim como outros tantos profissionais que trabalharam na criação.

A pele do felino em Black Is King
Título de artigo de Lilia Schwarcz na Folha de S. Paulo critica o uso da 'estampa de oncinha' (Foto: Parkwood Entertainment/Divulgação)
Título de artigo de Lilia Schwarcz na Folha de S. Paulo critica o uso da 'estampa de oncinha' (Foto: Parkwood Entertainment/Divulgação)

Eu usaria as autoras Katiuscia Ribeiro e Anin Urasse, grandes pensadoras do Mulherismo Africana, para interpretar Black is King: ambas remetem a conceitos africanos ancestrais e contemporâneos para explicar o uso da pele do felino. Primeiro que não existe onça na África, há leopardos, também chamados de panteras. E as vestimentas com sua pele eram e são usadas por sacerdotes em praticamente toda a África, num importante sentido de espiritualidade, segundo Urasse. Já Ribeiro, nos lembra como os povos do Kemet (Egito) e Kush (Etiópia) usavam a pele do animal em referência às estrelas, significando que “somos um pequeno universo”, “um microcosmo integrando um todo”. Olha a profundidade dessa afirmação.

Uma "recuperação africana"
No filme, Beyoncé também se apresenta ornada com chifres na cabeça e segundo a organização Afrocentricidade Internacional, isso é uma referência a Het-Heru, deidade do Kemet que era retratada com chifres para representar seu aspecto divino e realeza. A Orixá Oxum é a correspondente de Het-Heru no panteão iorubá e para ambas imagem e imaginação são algo muito importantes e potentes. Podemos também lembrar de como o sistema de escrita adinkra dos akans (parte do povo asante) era imagético e através das representações em desenhos e símbolos, passavam profundos ensinamentos filosóficos. É daí que sai a ideia de sankofa, em que devemos olhar para o passado para construir o presente em direção ao futuro.

Segundo a organização Afrocentricidade Internacional, chifres são referência a Het-Heru, deidade do Kemet  (Foto: Parkwood Entertainment/Divulgação)
Segundo a organização Afrocentricidade Internacional, chifres são referência a Het-Heru, deidade do Kemet (Foto: Parkwood Entertainment/Divulgação)

A África "essencial" que ela fala tem um sentido de resgate histórico com o objetivo de reconstruir o que a escravidão e o colonialismo tentaram apagar e destruir. Essa "recuperação africana" para muitos é apenas um revisionismo passadista sem valor, mas vejo como uma forma de questionar a história contada pelos brancos sobre nós e produzir rupturas e abalos na linha histórica linear eurocêntrica, escrita pelos ditos "vencedores", em que os brancos são tratados como representação de tudo que é belo, bom e verdadeiro. Então resumir a obra de Beyoncé enquanto apenas "glamour", "oncinha" e "brilho", essencialismo, ou enquanto fábula shakesperiana é muito pouco e até mesmo irresponsável.

A subestimação da mulher negra
Beyoncé é subestimada não só na academia, como também dentro das instâncias de legitimação da própria cultura pop, como o Grammy. O exemplo clássico e óbvio é aquele evento de 2015 em que ela concorria ao melhor álbum do ano, com o disco muito bom chamado Beyoncé (2014), e ela perdeu para o artista branco Beck, que tinha lançado um álbum inexpressivo. Dois anos depois, a mesma coisa: o álbum sucesso de crítica e público, politicamente relevante em suas temáticas, Lemonade (2016), perdeu para Adele, uma cantora branca. Beyoncé já é uma artista a se notar desde que começou com seu grupo Destiny’s Child. Ela já mostra que tem todo o potencial do mundo para ser a nova rainha do pop desde seu primeiro álbum solo Dangerously in Love (2003). Inclusive, o pesquisador Deivison Campos, professor da Ulbra (RS), afirma que aquela cena do beijo no VMA 2003 entre Madonna, Britney Spears e Christina Aguillera, visava ser uma "passada de bastão" simbólica para a próxima nova majestade e que já era um exemplo de demonstração do poder da branquitude para impedir a ascensão de Beyoncé e sua possibilidade de ter esse título.


O incômodo da branquitude com a arte negra
Esse artigo ao qual você se refere, Bacanal narcisista no Louvre: no novo clipe do casal, o mau gosto atroz impera, de Sheila Leirner, é um grande exemplo de racismo descarado e tosco. Ela é arrogante e sente no direito de desautorizar narrativas negras (clipe Appeshit, de Beyoncé e Jay-Z). A sua escrita é hostil e ataca ferozmente dois dos maiores artistas negros da atualidade. Ela enxerga como acinte esse casal se declarar tão relevante como as obras do Louvre e se sente extremamente ofendida por isso. Ela representa a maior parte dessa mídia hegemônica que opera com códigos interpretativos oriundos de uma visão exclusivamente eurocêntrica. Ou seja, ao atribuir valor a alguma forma artística, o que vai submergir com a sua análise também é sua condição de raça, classe, gênero, sexualidade, etc. Estamos falando de uma mulher branca, de classe alta, que mora há muitos anos na França, crítica de arte, curadora e devemos nos questionar o que esses marcadores podem nos dizer sobre a opinião que ela emite. Por que um casal de negros não pode posar para a câmara com a Mona Lisa ao fundo? Por que esses artistas negros não podem ser tão importantes quanto as obras de arte ali imortalizadas? 


Os museus são locais de legitimação, atribuindo o que é belo e merece ser contemplado. Também são símbolos de poder, como o Louvre, onde representam o saque colonial e servem como amostra das conquistas, algo que também tenta ocultar o processo de extrema violência do colonialismo. Há enfrentamento e ironia no clipe: além de corpos negros reencenarem diversas obras ali expostas, há crítica ao espaço extremamente "brancocêntrico", com uma maioria de pessoas brancas representadas nas artes, ou quando escolhem mostrar só o rosto da pintura Retrato de uma negra, que não por acaso é representada com o seio exposto, hiperssexualizando a representação de mulheres negras, ao invés da imagem de recato do ideal feminino branco ocidental. Além do racismo há a clara separação elitista entre o que é considerado alta arte e as outras ditas menores, por serem oriundas de uma expressão mais popular, ilustrando de maneira mais contundente uma diminuição da cultura pop nos ambientes não só acadêmicos, como também da grande mídia, como jornais de grande circulação.
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