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Literatura Escritor Sidney Rocha apresenta personagem misterioso e sedutor em novo romance O texto acompanha com argúcia a vida - talvez vivida, talvez imaginada - pelo protagonista, um bon vivant capaz de grandes feitos, graças à (suposta) inteligência acima da média

Por: Fellipe Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 14/09/2015 09:25 Atualizado em: 14/09/2015 19:06


Personagem central da nova obra vive um sonho de solidão em meio à multidão de uma grande cidade. Foto: Alcione Ferreira/DP/D.A Press
Personagem central da nova obra vive um sonho de solidão em meio à multidão de uma grande cidade. Foto: Alcione Ferreira/DP/D.A Press

Como é possível um personagem murmurar, em um romance: “siamed orucse ocuop mu átse” (ou seja, uma frase ao contrário)? Essa é a menor das questões inexplicáveis presentes em Fernanflor (Iluminuras, R$ 38), primeiro volume da trilogia Gerônimo, de Sidney Rocha, com lançamento no Recife marcado para 7 de outubro, na Livraria Cultura do Paço Alfândega (Rua Madre de Deus, s/n, Bairro do Recife). Ao mergulhar na complexidade da narrativa ficcional (bem curta, “boa para ser lida em um gole só”), o leitor terá indícios dos motivos pelos quais a obra demorou seis anos para ser escrita. O livrinho de 114 páginas e 23 centímetros pesa uma tonelada, de tão burilado. A generosidade em suscitar questionamentos, elucubrações e teorias, mingua quando mais precisamos de respostas, certezas, explicações.

O texto acompanha com argúcia a vida – talvez vivida, talvez imaginada – pelo protagonista, um bon vivant capaz de grandes feitos, graças à (suposta) inteligência acima da média e ao poder de sedução, mas com defeitos tão graves quanto as qualidades. “Picado pelo escorpião da vaidade”, Jeroni Fernanflor percorre cidades e se integra com facilidade a elas e a seus habitantes, embora deseje fugir do ordinário. Tal qual um Forrest Gump, personagem vivido por Tom Hanks no filme homônimo de 1994, o homem alcança (ou sonha ter alcançado) grandes conquistas por obra do acaso. Nada parece estar fora de suas possibilidades: “Cada dia sem alcançar o topo da montanha é de martírio e fracasso”.

Torna-se homem da alta sociedade cuja vivência é estranhamente catalogada. Por exemplo, sabe-se detalhes precisos do itinerário de Jeroni enquanto esteve na cidade de Bressol. Frequentou 38 almoços de embaixada, 116 jantares de confraternização, 46 bailes. 220 chás, 39 banquetes, 64 casamentos, 17 missas de corpo presente, 125 noitadas de pôquer, 48 apostas no clube de jóquei, 260 velórios. Parece prestes a conquistar o mundo com o próprio talento para as artes, com a fama, a inteligência. Pintava retratos e possuía atrizes, rainhas e princesas.

Sidney define o personagem: “Fernanflor é meio ou completamente individualista, apaixonado pela beleza. Vive a própria verdade. Extremamente sedutor, mas a sedução está mais ligada ao mal do que ao bem. Ele é as duas coisas. A gente tem que entender que não somos bons ou maus. Somos bons e maus. Por isso que você pode sentir pelo personagem amor, ódio, pena ou compaixão”.

Anunciado na quinta-feira passada como semifinalista do prêmio literário Oceanos (com Sofia), o autor cearense – pernambucano por acolhimento – completa este mês 50 anos de idade e 40 de literatura. O segundo e terceiro título da trilogia Gerônimo estão previstos para 2016 e 2017, respectivamente. Depois disso, Sidney cogita encerrar a carreira literária. “Se eu fizer um excelente trabalho, considero acabado. Não tenho o romantismo de que vou morrer escrevendo”.

Entrevista >> Sidney Rocha

Como define o personagem-título?
Fernanflor é meio ou completamente individualista, apaixonado pela beleza. Vive a própria verdade. Extremamente sedutor, mas a sedução está mais ligada ao mal do que ao bem. Ele é as duas coisas. A gente tem que entender que não somos bons ou maus. Somos bons e maus. Por isso que você pode sentir pelo personagem amor, ódio, pena ou compaixão. Lógico que há característica forte do livro, o fato de ser tudo a partir da linguagem, que termina nivelando tudo. Tanto Jeroni Fernanflor, o indivíduo, quanto a multidão. O grande paradoxo desse livro por ser esse sonho de solidão do personagem. Essa coisa de eu me basto, consigo suportar a escuridão do meu quarto, passar o dia sem acessar as redes sociais ou falar com o porteiro do prédio. 

A obra se chamaria Claroescuro e mudou de última hora. O que houve?
Pensei no que era realmente importante neste livro e julguei que não seria justo com o personagem não dedicar o título a ele. Tenho buscado personagem tão forte... Isso só foi possível pelo distanciamento que tive com o texto, depois de passar muito tempo ser lê-lo. Quer dizer... Antes eu negava o título do livro ao nome do personagem porque ele até hoje me aterroriza.

Jeroni é uma espécie de herói, um além-homem (o übermensch de Nietzsche)? Ele é extremamente superior em relação às pessoas comuns, mas não sabemos se é verdade, talvez pela construção fragmentada.
Ele poderia ter sido qualquer coisa. É diferente. Para se ter ideia, o amicíssimo dele, Valentino, era alguém que cuidava do jardim. São essenciais esses intervalos, essa nuvem que se interpõe entre a realidade e o que ele deixa que acreditemos até o final do livro. Quando o leitor conclui a obra, entende um pouco, mas fica na dúvida também, com perguntas. De que realidade se está falando? Até porque ninguém é tão poderoso assim. A vida é mais poderosa. Fernanflor é tão altivo, quase prepotente em relação à vida e às pessoas, então ficam as perguntas: Como é a vida de verdade? Quem estará no seu enterro? Como não julgo o personagem - seria burrice - deixo que o leitor o escute.  

O livro começa com epílogo e termina com prólogo. É uma pegadinha?
Não foi à toa. Quando digo sim, estou dizendo não, quando digo fim, estou dizendo começo. Quando estou falando a verdade, Fernanflor pode não estar. São muitas dúvidas: O que é fim e o que é começo? Aquela é a vida do personagem, a vida que ele sonhou? Ou a vida para a qual ele morreu? Não é somente pegadinha. É um paradoxo. Ao fim da leitura, há outras perguntas a serem feitas: Que cadáver sou eu? Que livro sou eu? Que Fernanflor sou eu? Porque Fernanflor somos todos nós. Não há coisa nenhuma no livro que não tenha potencial de despertar o interesse de quem gosta de leitura profundas e que não diga: “Porr*, isso é verdade. Esse cara é o filho da p*ta do meu primo”.

Fernanflor tem relação forte com as cidades e observa muito as pessoas para pintá-las. Você tem essa relação com a cidade onde mora e com as pessoas nas ruas?
Não tem a ver com o Recife, mas com o mundo.  Um escritor é, sobretudo, um observador, não um anotador. Escrever é principalmente ver, olhar. E ler é saber interpretar o mundo. No caso de Fernanflor, ele se via como um “danado” (como dizia Fernando Pessoa), no sentido da danação, de quem foi prejudicado na maneira de ver o mundo.

Fábrica de aforismos>>>>>
Frases de efeito servem como marcadores da leitura de Fernanflor. Espalhadas por todo o livro, elas reforçam uma das principais características do personagem-título, a sedução. Veja algumas.

O amor é orgia de plebeus.

Além disso, é bom evitar aquilo que não dependa exclusivamente de nós. O amor é uma dessas coisas.

Tempo e dinheiro devem produzir beleza e ócio.

Só conhece o amor quem conhece bem o ócio.

Nada é tão importante que não seja esquecido qualquer dia.

A fama faz o homem acordar todo dia um outro homem.

Em todo instante, há alguém olhando alguém, o mundo é um corpo com bilhões de olhos espreitando.

A violência é gesto político razoável para quem não tem liberdade.

A cidade é uma pérola morta.

Todo retrato é um retrato falado – ou uma imagem que fala.

Fotografias são mundos mortos. Pinturas são galáxias reduzidas à poeira.

A solidão é algo incompreensível para o mundo viciado em comboios e compartilhamentos.

Ninguém pode manter-se numa jaula o tempo todo, nesse falso autocontrole (...) nem se pode amar todos, nem ser amado tão intensamente a vida inteira. Tudo seca.

Se o homem é largo e a porta estreita, ou se arromba a porta ou se arromba o homem.   


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