Vida Urbana
Religiosidade
O corpo deve ser tratado com dignidade, pois ele foi palco de uma história sagrada
Publicado: 02/11/2020 às 15:27

/Foto: Prefeitura de Cuiabá/ Divulgação
*Texto produzido pelo padre Kaio Cavalcanti, pároco da Paróquia Nossa Senhora da Paz de Afogados e Presidente da Comissão Arquidiocesana para Vida e Família. Graduado em Filosofia e Teologia pela UNICAP e graduando em psicologia pela UNIFG.
Sempre entendi que o morrer é o último dos processos vitais, o desfecho biológico do viver: muito mais do que um instante em que o sujeito é movido para o seu fim, a morte é um chamado à consciência de que todos os seres na natureza são finitos e nenhum deles poderá escapar de sua atração fatal. Neste sentido, o luto é como que uma dolorosa elaboração desta tomada de consciência da nossa finitude e do que, ao longo da vida, por alguma razão, tornou-se significativo para nós.
A Liturgia da Igreja celebra a morte a partir da ótica da vida: no batismo o sujeito tem o corpo ungido com óleo e lavado com água para indicar sua consagração a Deus. A história desse indivíduo, situado no tempo-espaço em função de sua corporeidade, deverá ser construída tendo em vista que um dia este corpo vivente será palco de muitos momentos bonitos, outros desafiadores e alguns possivelmente tristes, mas que seu desfecho não será a morte biológica, mas a ressurreição em Cristo e, por isso, o corpo que padecerá é tratado com dignidade, pois ele foi palco de uma história sagrada.
No ritual fúnebre, ao mesmo tempo em que se exaltam nos ritos exequiais a sacralidade e beleza da dimensão corporal da pessoa humana, venera-se igualmente a alma que, embora não anime mais um corpo em função da morte biológica, levará consigo sua história e a apresentará ao Senhor, enquanto aguardará o julgamento definitivo em Cristo, no fim dos tempos. Esses ritos têm um valor não só teológico, mas antropológico, pois lida com o sentido da morte. Além disso, ajudam no processo de luto, pois contribuem para a tomada da consciência do fim biológico, ao mesmo tempo em que nos enche de esperança para uma realidade em que o ser continua vivo, ainda que numa outra instância de existência.
Em função da pandemia, nos meses mais críticos, fomos orientados a agir com muita cautela nessas celebrações, em função dos riscos não apenas para nós, mas para todos os que estariam reunidos para dar adeus a quem partiu. Tive amigos que partiram, foram vítimas da Covid-19 e foi muito doloroso não poder velá-los. Senti a dor que muitos sentiram também. Acredito que não houve privilegiados nesta pandemia, no sentido de que se não aconteceu conosco, no mínimo conhecemos alguém que não pode fazer todo o processo de luto, como comumente é realizado. A comunidade também sentiu muito. O jeito que encontrei foi rezar, mencionando cada nome que chegava através de mensagens e ligações.
No começo, organizamos com alguns poucos paroquianos, uma capela na sala de jantar da residência paroquial. De lá, rezávamos e nos solidarizávamos com os irmãos. Nos dias mais intensos da pandemia, quando não podíamos reunir a comunidade e eu me isolei em casa, fiz do meu quarto uma extensão da Igreja. Montei um altar e os equipamentos necessários para transmitir a Celebração da Eucaristia. Foi um modo de vencer a distância e o isolamento. Rezávamos pelas famílias, pelas pessoas que partiram e sempre deixava para dar algumas palavras de conforto e esperança no final das celebrações. Recebi muitas mensagens e telefonemas em agradecimento. Fiquei feliz porque, mesmo em tempos tão difíceis, conseguimos dar o nosso jeito. Não sei se foi o melhor jeito, mas foi o jeito que demos e isso foi motivo de orgulho para nós porque nem a distância e nem a pandemia nos deixou longe uns dos outros e sem o devido consolo em tempos tão difíceis.
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