Diario de Pernambuco
Busca

SAÚDE

Crianças com a Síndrome do Zika completam cinco anos convivendo com a microcefalia

Publicado em: 19/10/2020 07:20 | Atualizado em: 19/10/2020 10:06

 (Foto: Sandy James / Esp. DP)
Foto: Sandy James / Esp. DP
Quando a terceira filha da dona de casa Crislene Feitosa, 31 anos, nasceu, ela ouviu que a bebê não passaria dos três meses de vida. Jayane Cristina era a caçula esperada de uma família que vive no Alto José Bonifácio, Zona Norte do Recife. Após uma gestação sem complicações, Crislene recebeu o diagnóstico de que a filha tinha microcefalia. Médicos de outros estados examinaram a recém-nascida, em um esforço interestadual para investigar o motivo do aumento no número de bebês que nasciam em Pernambuco com o perímetro encefálico menor do que o esperado. 

Contrariando as expectativas iniciais, Jayane completou 5 anos em 2020 e faz parte de uma geração de crianças pernambucanas diagnosticadas com a Síndrome Congênita do Zika, que tem a microcefalia como uma das consequências.

Há cinco anos, Pernambuco estava no epicentro de uma epidemia que intrigava cientistas de todo o mundo. Estudiosos de centros de pesquisa da Europa, dos Estados Unidos e de outros países da América Latina desembarcavam no Recife para tentar entender por que estavam nascendo tantas crianças com microcefalia no Nordeste brasileiro. Meses depois, foi atestada a relação entre o zika vírus e os nascimentos desses bebês. Das 472 crianças que nasceram em Pernambuco, 422 estão vivas, de acordo com os dados mais atualizados pelo governo federal, de maio deste ano. 
Muitas estão completando cinco anos em outubro, mês no qual, em 2015, a Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE) comunicou a existência de uma epidemia inusitada ao Ministério da Saúde após detectar 29 crianças com microcefalia em maternidades do estado.

Para Crislene, nenhum período na vida da filha foi tão desafiador quando o vivido logo após o diagnóstico, cinco anos atrás. “Naquela época, não se falava de microcefalia e da relação dela com o zika vírus. Estar nesse ‘olho do furacão’, sem uma definição do que era foi uma fase muito dura. Eu ouvia que a minha filha não chegaria ao primeiro ano de vida, que ela seria um ‘vegetal’. A confirmação da relação com o vírus só chegou quando ela tinha três meses. A minha vida mudou completamente. Ela depende 100% de mim”, conta a mãe. No ano passado, Jayane passou a frequentar a Creche Municipal Criança Feliz. A etapa escolar representou, para a família, mais uma vitória. “Foi mais um marco na evolução dela. A creche nos acolheu bem, fez adaptações para recebê-la, mesmo que ela fosse a única aluna com a síndrome lá”, afirma.

Entre o nascimento e o aniversário de cinco anos de Jayane, o conhecimento médico sobre a doença avançou e já foram encontradas soluções para dúvidas que mães como Crislene tinham, mas que, na época, ainda não havia resposta. O Ministério da Saúde ressalta, porém, que, mesmo em 2020, “o conhecimento a respeito dos desfechos gestacionais ligados à infecção pelo vírus zika na gravidez ainda encontra-se em construção na literatura científica”. Um estudo feito em 2019 pela Secretaria Nacional de Vigilância em Saúde mostrou que a taxa de grávidas com confirmação do vírus foi de menos de 10%. Entre 4.383 gestantes, 431 (9,5%) tiveram a infecção comprovada. Das gestantes confirmadas com o zika no ano passado, 205 (47,6%) tinham entre 20 e 29 anos e 231 (53,6%) eram solteiras. A maioria estudou até o ensino médio e 334 (77,5%) realizaram sete ou mais consultas de pré-natal. Em 2019, a maior parte dos casos ocorreu no Sudeste do país, seguido do Nordeste. O Rio de Janeiro e o Espírito Santo foram os estados com mais registros. 

Pandemia interrompeu tratamentos

A rotina de Maria José Santos, 34, com a filha, Geovana, que completou 5 anos em setembro, era exaustiva antes do início da pandemia da Covid-19. Pelo menos duas vezes por semana, elas viajavam três horas de Belo Jardim, no Agreste do estado, para o Recife. Em outros dois dias, iam até Caruaru, também no Agreste. As viagens eram para que Geovana tivesse acesso a terapias e  consultas com médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e outros profissionais. Por causa da crise sanitária causada pelo novo coronavírus e da consequente necessidade de isolamento, mãe e filha ficaram trancadas em casa.

 (Foto: Izabelle Brito / Divulgação)
Foto: Izabelle Brito / Divulgação
Se por um lado não havia mais o cansaço por tantos trajetos na BR-232, por outro, as terapias precisaram ser interrompidas. Os sobreviventes da epidemia causada pelo mosquito Aedes Aegypti dependem das consultas e sessões de reabilitação para se desenvolverem. No período da pandemia, contudo, muitos apresentaram regressão das conquistas ou pararam de progredir.

No caso de Geovana, algumas terapias foram mantidas, mas à distância. “Ofereceram teleatendimento e, assim, conseguimos continuar com algumas sessões, mesmo não sendo a mesma coisa. Para o próximo ano, além de retomar totalmente as terapias, pretendo coloca-la na escola, mas esse é um plano a longo prazo, pois tenho avaliado várias questões”, diz Maria José. Antes do nascimento da filha, Maria trabalhava como diarista em Belo Jardim. Assim como 92% das mães de crianças com Síndrome Congênita do Zika, de acordo com a ONG União de Mães de Anjos (UMA), ela teve que deixar o emprego para garantir os cuidados em casa e o acompanhamento nas terapias.

A oftalmopediatra Liana Ventura, presidente da Fundação Altino Ventura (FAV), ressalta que a pandemia tem sido desafiante para toda a sociedade, mas, especialmente, para as famílias dessas crianças. Segundo ela, um dos principais prejuízos causados foi a parada do tratamento com aplicações de toxina botulínica. O produto, conhecido pela marca Botox, é usado em bebês com microcefalia que apresentam espasticidade, ou seja, distúrbio de controle muscular que causa rigidez. As aplicações fazem a musculatura relaxar e deixam a abertura de mãos e das pernas mais flexíveis, por exemplo.

“Usamos uma plataforma do estado de teleconsulta para minimizar as perdas dessas crianças. Há dois meses, voltamos a atender e estamos tentando avançar. Ainda não estamos no ritmo normal, até porque muitas famílias ainda têm medo de comparecer ao serviço”, afirma Liana. Segundo ela, outra preocupação neste período de pandemia é o excesso de telas, usadas para entreter as crianças e que podem prejudicar ainda mais a visão. Lesões oculares graves foram alguns dos primeiros achados científicos relacionados à Síndrome Congênita do Zika em 2015. 

Monitoramento

A pandemia do novo coronavírus fez com que a rede de saúde precisasse se adaptar para continuar, na impossibilidade da realização de terapias presenciais, oferecendo alguns serviços às crianças com microcefalia do estado. Como fazem parte do grupo de risco da Covid-19, elas foram acompanhadas pela Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE). Até o dia 2 deste mês, 53 crianças com a Síndrome Congênita do Zika e familiares delas foram monitorados pela pasta com sintomas gripais. Sete casos da Covid-19 foram confirmados entre crianças com microcefalia, sendo seis recuperadas. Um óbito foi registrado: o de uma menina de 4 anos. 

A coordenadora do Núcleo de Apoio às Crianças com Microcefalia da SES-PE, Laura Patriota, ressalta que a pandemia foi o grande desafio do setor em 2020. “A gente tinha um planejamento de ações, formações, mas foi preciso repensar todas as nossas práticas. Continuamos com as mesmas metas, mas a forma de chegar a esses indicadores precisou mudar”, explica. O primeiro passo adotado pelo núcleo foi vacinar todas as crianças contra a gripe H1N1. “Não sabíamos como as crianças iriam reagir ao novo vírus, então, elaboramos uma nota técnica e começamos a trabalhar com os municípios a forma de vacinação contra a gripe. Passado o período de vacinação, iniciamos um trabalho na assistência dos serviços ambulatoriais”, pontua.

 (Foto: Izabelle Brito / Divulgação)
Foto: Izabelle Brito / Divulgação
Em março, a Secretaria Estadual de Saúde passou a oferecer teleconsultas aos usuários da rede SUS. As crianças com a Síndrome Congênita do Zika e outras doenças raras e deficiências foram, de acordo com a SES, as primeiras contempladas neste formato de atendimento na rede especializada e de reabilitação. Posteriormente, outros pacientes foram incluídos. Foram realizadas cerca de 9 mil teleconsultas entre março e setembro. O telemonitoramento foi feito com 53 crianças com a síndrome e familiares.

Também foram elaborados e disponibilizados, segundo Laura, sete vídeos educativos para familiares das crianças, com as temáticas: atividade de vida diária; o ambiente domiciliar; mobilidade; dispositivos ortéticos; ansiedade, medo e saúde mental. O objetivo era apoiar e orientar sobre o cuidado e acerca dos estímulos no ambiente domiciliar em parceria com profissionais e conselhos de classes. A palestra virtual Síndrome Congênita do Zika e outras doenças raras foi realizada no período da pandemia, com a participação de 507 profissionais de saúde, estudantes e familiares.

Próximo passo

Se em 2015 o desafio principal relacionado às crianças com a Síndrome Congênita do Zika era a inclusão  nos serviços de saúde; em 2020, com a maioria na faixa dos cinco anos, a área que tem demandado maior atenção é a educação. Além de oferecer estruturas física e pedagógica adequadas nas instituições de ensino, profissionais que lidam diretamente com as famílias afirmam trabalhar também para convencer pais e mães sobre a importância de fazer a matrícula em uma escola.

A professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e autora do livro Síndrome Congênita do Vírus da Zika, Microcefalia: guia prático para profissionais da educação, Pompéia Villachan-Lyra, afirma que, passado o momento inicial de apropriação do que estava acontecendo e da contenção da epidemia, os olhares começaram a se voltar para o universo da educação. “Quando elas começaram a fazer três anos, saindo da primeiríssima infância, alguns desafios começaram a aparecer e o principal foi relacionado à entrada na escola. Havia uma necessidade de formação de professores e também de preparação da família, que convivia 24 horas com a criança.” 

Na Síndrome Congênita do Zika, os níveis de comprometimento são muito variados, o que dificulta a definição de intervenções únicas ou padronizadas. “O importante é reconhecer o direito e a necessidade de essas crianças cursarem uma escola regular e garantir que esse direito seja respeitado. Além disso, é fundamental compreender as necessidades individuais e respeitá-las em seus processos de desenvolvimento”, afirma. 
 
 (Foto: Izabelle Brito / Divulgação)
Foto: Izabelle Brito / Divulgação
Para a pedagoga, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Neuropsicologia, Afetividade, Aprendizagem e Primeira Infância (Ninapi) e doutoranda em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Mirella Almeida, a missão de continuar proporcionando qualidade de vida às crianças passa, neste momento, principalmente pela educação. “Elas estão entrando em idade escolar. No contexto da pandemia, sem ir para as terapias e para as aulas, já foi percebido um retrocesso no desenvolvimento motor, na visão. As políticas públicas precisam olhar, tanto na saúde quanto na educação, para as demandas específicas dessas crianças”, diz.

Foi após ser matriculado na creche, em Peixinhos, Olinda, que Riquelme Kauan, 4 anos, apresentou os principais marcos do desenvolvimento, segundo a mãe, Ávila Nejaim, 25. “Quando ele tinha 3 anos, coloquei na creche. Vendo os amiguinhos andando, percebi que meu filho queria fazer o mesmo. Ele começou a dar os primeiros passos depois de começar a estudar e, hoje, caminha solto”, conta. “Espero que ele volte quando for possível e, para os próximos anos, desejo que ele continue esperto e com muita saúde para continuar aprendendo”, completa a mãe. 

Rede municipal

Dos 4.803 alunos da educação especial da rede municipal do Recife, 57 têm microcefalia resultante da Síndrome Congênita do Zika. No período de suspensão das aulas presenciais para a educação infantil, ainda sem previsão para retorno no estado, essas crianças têm tido, de acordo com a Secretaria Municipal de Educação, acesso a aulas remotas, por meio de vídeos e cerca de 80 jogos educativos. Ao todo, na rede municipal de ensino do Recife, estão matriculados 92 mil estudantes. Entre 2012 e 2020 o número de matrículas na educação especial do município cresceu 54%.

Os primeiros quatro alunos com microcefalia da rede foram matriculados em 2017. Nesse ano, 233 profissionais do Atendimento Educacional Especializado receberam qualificação específica para receber essas crianças. Segundo a Secretaria Municipal de Educação, todas as crianças com a Síndrome Congênita do Zika que procuraram vagas na rede de ensino foram matriculadas.

Quando estavam na modalidade de ensino presencial, as crianças contavam com as Salas de Recursos Multifuncionais da rede, que oferecem kits especiais com foco neste grupo educacional, cada um contendo 10 objetos, destinados a estimular funções visuais, auditivas, motoras, táteis e cognitivas dos alunos com microcefalia. A ação é fruto de uma parceria com a Secretaria de Saúde do Recife. 

Devido à pandemia da Covid-19 e a consequente suspensão das aulas presenciais no estado em 18 de março, muitas mães perceberam uma regressão no desenvolvimento dos filhos, que haviam sido conquistados graças à socialização com outras crianças no ambiente escolar. “A escola oferece um material para que a gente possa, minimamente, dar continuidade aos trabalhos pedagógicos, mas, infelizmente, não temos a mesma capacidade de um professor. Além disso, falta a socialização, parte mais importante desse processo”, disse uma mãe de uma criança de 5 anos com microcefalia que não quis se identificar. 

A Prefeitura do Recife informou que são disponibilizadas aulas na TV Alepe, da Assembleia Legislativa de Pernambuco; atividades via aplicativos de comunicação; e-mail e conteúdos pedagógicos impressos com temáticas contextualizadas e orientações de estudo e rotinas para os alunos, que contam ainda com jogos, vídeos educativos e brincadeiras.  A diretora executiva de gestão pedagógica da rede municipal, Áquila Melo, afirma que o objetivo “é minimizar as possíveis lacunas pedagógicas decorrentes desse período”.

Profissionais do Atendimento Educacional Especializado (AEE), segundo a gestão municipal, articulam o processo inclusivo nas unidades escolares e orientam os professores das salas de aula do ensino regular no processo de ensino e aprendizagem dos estudantes com deficiência.
Os comentários abaixo não representam a opinião do jornal Diario de Pernambuco; a responsabilidade é do autor da mensagem.
MAIS NOTÍCIAS DO CANAL