Microcefalia

Quatro anos após epidemia, blog da UnB acompanha famílias afetadas pelo Zika

Publicado em: 06/04/2019 07:00 | Atualizado em: 07/04/2019 10:06

A dona de casa Suzana percebe, no dia a dia, os pequenos avanços do filho Wilian, 3 anos,  por conta do tratamento. Foto: Mandy Oliver/DP Foto
Kauan completou quatro anos. Sobreviveu aos primeiros prognósticos lançados durante a epidemia da Síndrome Congênita da Zika, que afetou crianças expostas ao vírus zika durante a gravidez e fez surgir um novo perfil de microcefalia no mundo. O menino segue em múltiplos tratamentos, sem nunca ter vivenciado estado vegetativo, como sugeriram um dia. É imensa fonte de amor para os seus. Não é possível esquecer Kauan. Ele e outras crianças nas mesmas condições de saúde resistem junto com suas famílias quase quatro anos depois da descoberta dos primeiros casos. Precisam de políticas públicas eficientes até o último dia de suas vidas. Porque têm direito, assim como qualquer outra criança. Não são invisíveis. Ao menos não deveriam ser, do ponto de vista de garantia de direitos.

Bem longe de Pernambuco, estado onde Kauan mora e onde a epidemia se apresentou mais grave, está a antropóloga Soraya Fleischer, professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UNB). Ela se juntou aos estudantes e criou um blog chamado Microhistórias. A ideia é impedir que os casos caiam no esquecimento. No espaço online, relatam as narrativas de vida de pessoas afetadas pela síndrome em Pernambuco. Doze famílias são acompanhadas desde 2016. O projeto, bancado pelo CNPQ, terá financiamento até 2020. A expectativa é dar continuidade ao blog por conta própria. Porque a iniciativa já virou um projeto de vida.

Os textos do blog usam um vocabulário distante do usado na academia e, portanto, mais acessíveis. Uma vez por semestre, os estudiosos vêm ao Recife, onde passam 15 dias acompanhando as famílias. “Precisamos entender, do ponto de vista da antropologia, o assunto. A mídia cobriu muito, havia muita gente de saúde envolvida, claro, por ser um vírus novo, mas as ciências sociais também têm muito a dizer. Com o afastamento da mídia, as mulheres diziam: a gente tá sendo abandonada”, pontua Soraya. A próxima visita acontece na primeira semana de julho.

A rotina das famílias é narrada no formato de contação de histórias. São textos curtos para serem lidos por qualquer pessoa, no ônibus ou na fila do banco. “Temos cerca de 30 textos que trazem histórias de mulheres e suas dificuldades de mobilidade, acesso a serviços de saúde, brigas na farmácia do estado, discussão com o marido”, ilustra Soraya.

A família de Kauan é uma das acompanhadas pelo projeto. O menino vive com os pais e a avó materna em uma casa no bairro de Nova Descoberta, no Recife. De segunda a sexta, faz reabilitação pela manhã e, à tarde, frequenta uma escola municipal. Hoje, pesa 20 quilos e já começou a comer alimentos sólidos. O momento mais difícil para a família foi o internamento da criança durante 27 dias. “Ele é muito importante na minha vida. Me fez uma pessoa mais forte, determinada. Vou lutar até o fim pelos direitos dele”, promete a avó, Conceição Oliveira, 44.

Suzana Lima da Silva, 29, também teve o filho condenado ao estado vegetativo. É outra mãe a contar sua história no blog. Wilian completou 3 anos e segue em seus pequenos avanços. “Vejo que ele evoluiu, a gente percebe no dia a dia, devagar”, conta a dona de casa, acometida pelo zika no quinto mês de gravidez. Hoje o menino frequenta uma creche e faz os tratamentos ao longo da semana.

“Qualidade de vida para nossas crianças não é só falar, andar e sentar. É comer pela boca, fazer cocô todo dia, não respirar por traqueostomia, não se atrofiar com escoliose, não viver internado”, ressalta Germana Soares, fundadora da União de Mães de Anjos (UMA), onde estão associadas 409 famílias. Através do WhatsApp, elas se comunicam. Para Germana, o estado oferece um serviço ainda ineficiente, segundo ela, porque está sobrecarregado.

Entrevista com Celina Turchi, epidemiologista da Fiocruz

A expectativa era uma mortalidade maior de crianças com diagnóstico da Síndrome Congênita da Zika. Quase quatro anos depois, muitas seguem. Como você percebe esse comportamento da doença?
No jargão médico, dizemos que as doenças apresentam espectro de gravidade. Sabemos hoje que a exposição ao vírus zika durante a gravidez pode ocasionar não só nascidos vivos com anormalidades, mas também abortos e natimortos. Entre os nascidos vivos, um percentual dos casos mais graves morre nos primeiros seis dias de vida, o chamado período neonatal precoce. Essa característica de maior mortalidade no período neonatal precoce representa comportamento padrão das curvas de mortalidade na infância.  Existe, portanto, a perspectiva de sobrevida de mais longa duração na dependência das condições clínicas e dos cuidados de saúde instituídos. Apenas o monitoramento de longo prazo permitirá responder sobre o perfil de sobrevida das crianças.

O que temos de concreto até hoje sobre a epidemia? Quais pesquisas estão em andamento?
Do ponto de vista científico, estudos mostraram evidências que o vírus da zika podia causar anormalidades fetais, nova infecção congênita. Esta descoberta científica foi de importância mundial para a saúde reprodutiva da mulher. As características dessa nova síndrome foram descritas, incluindo achados neurológicos, oftalmológicos, auditivos, retardo do crescimento e desenvolvimento motor, etc. O pico da epidemia de microcefalia associada à Zika ocorreu entre outubro de 2015 a fevereiro de 2016 no Nordeste; no pós-epidemia há evidências epidemiológicas que o vírus zika continua circulando, porém com menor intensidade. Entre os projetos em andamento realizados por pesquisadores do Microcephaly Epidemic Reserach Group (MERG) citamos: monitoramento das grávidas com e sem exantema e expostas ao vírus zika, monitoramento das crianças nascidas das mães infectadas, impacto social nas famílias.  Citamos ainda o inquérito populacional para demarcar a exposição aos vírus zika, dengue e chikungunya em Recife, sob a coordenação da doutora Cynthia Braga da Fiocruz-Pernambuco. Muitos são projetos colaborativos com o consórcio europeu (ZikaPlan), Medical Research Council-UK, Wellcome Trust, Organização Pan Americana de Saúde, Ministério da Saúde do Brasil entre outros.

Há risco de novas epidemias?
Pelo que sabemos da epidemiologia da infecção pelo vírus zika, a resposta é sim. Há abundância de mosquitos (Aedes aegypti) que são os transmissores da infecção, parte da população ainda é suscetível e o vírus continua circulando embora em menor intensidade. As condições climáticas regionais são ideais para a proliferação, a urbanização desordenada e o saneamento precário dificultam o controle dos criadouros dos mosquitos e ainda não existe vacina antiZika. A pergunta que mobiliza os pesquisadores é: quando teremos novos surtos e quais são as áreas de maior risco. 

 
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