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Comportamento

Um cônsul britânico a serviço não só de Sua Majestade

Cônsul do Reino Unido, Graham Tidey virou entrevistador e youtuber para inspirar a atual e as futuras gerações

Publicado em: 18/02/2019 18:32

A atriz Hermila Guedes falou sobre o seu processo criativo. Foto: YouTube/Reprodução
Numa tarde de quarta-feira assustadoramente quente, chego ao oitavo andar de um presunçoso edifício empresarial de fachada espelhada na Ilha do Leite com a missão de entrevistar o cônsul britânico no Recife. Àquela altura fazia vários meses que eu não tinha oportunidade de conversar com um english speaker nativo. Encarei a pauta não só como mais uma missão neste resistente ofício do jornalismo diário, mas também uma oportunidade rara no campo linguístico. 

À entrada do escritório, uma espessa porta de metal que só abre e fecha mediante um código numérico me leva de volta aos filmes de espionagem da Guerra Fria - por pouco tempo, já que, logo em seguida, a cordial secretária me dá as boas-vindas a uma asséptica sala de espera com piso de carpete, que lembra a recepção de um curso de inglês. Enquanto aprecio a réplica de cabine telefônica vermelha em tamanho exagerado que decora o reduzido ambiente, leio cartazes sobre oportunidades de investimentos no Reino Unido e vejo pela janela as filas de carros que formam um interminável engarrafamento na Avenida Agamenon Magalhães, sou cumprimentado por um sujeito loiro, magro, vestindo calça esportiva e camisa polo. 

Antítese de qualquer expectativa que a maioria das pessoas teria sobre a solenidade relacionada ao cargo máximo de representação de Sua Majestade por essas terras, Graham Tidey também aparenta ter a intenção de imprimir uma marca própria a um cargo que remonta à Grécia Antiga. 

No Wikipedia, o verbete “cônsul” explica que “recebe este título o funcionário de um Estado responsável, em país estrangeiro, pela proteção dos interesses dos indivíduos e empresas que sejam nacionais daquele Estado.” Morando no Brasil desde 2013 e casado com uma professora pernambucana, com quem tem um casal de gêmeos de um ano de idade, Graham ampliou seu raio de atuação desenvolvendo um projeto no qual entrevista personalidades do mundo empresarial, da cultura, da educação e de outras áreas para amplificar suas vozes e suas histórias inspiradoras. 

Abrindo portas e agendas através do prestígio de seu cargo, ele já publicou cerca de 35 vídeos de sua série In Conversation no YouTube. Do empreendedor educacional Janguiê Diniz à atriz Hermila Guedes, passando pela farmacêutica e ativista-símbolo dos direitos da mulher Maria da Penha, os entrevistados acabam formando um amálgama de perfis e ideias tão eclético quanto as experiências de vida do cônsul. 

Natural de Boroughbridge, cidade de 3,5 mil habitantes no interior da Inglaterra, Graham é dono de um currículo incrivelmente vasto para seus 34 anos de idade. Jardineiro, cozinheiro, vendedor de loja e entregador são apenas alguns das funções que ele já exerceu. Formado em música na Inglaterra, fez do mundo seu palco para descobrir novas habilidades. Numa de suas muitas “encarnações”, passou sete anos não no Tibet, mas em Portugal, onde foi professor de inglês e corretor de imóveis voltados ao mercado de clientes da terceira idade. Com um novo idioma na bagagem, mudou-se para o Brasil e exerceu, por três anos, o cargo de gerente comercial do Consulado do Reino Unido no Recife. Em 2016, foi promovido à função atual. 

“O antigo cônsul deixou o cargo, eu me sentei à mesa dele e não saí mais”, brinca o bretão, que, em meio às sufocantes temperaturas do verão recifense 2018/2019, tirou breves férias para levar os filhos pela primeira vez às Ilhas Britânicas. Lá, as crianças puderam ver os avós paternos, moradores do interior da Escócia, e a neve. Apenas um intervalo idílico na vida de um súdito de Elizabeth II que já conversa com frases ditas metade em inglês, metade em português.

She came from a place where she used to put sacolas do supermercado on her feet do go to school because she didn’t want them to get wet”, conta, relembrando que uma de suas entrevistadas, a piauiense Monalysa Alcântara, miss Brasil 2017, cobria os pés com sacos plásticos para não estragar os sapatos no lamaçal que atravessava diariamente para chegar à escola. 
“Ela veio da pobreza. Alcançou seus sonhos, mas também recebeu ódio (negra, Monalysa foi alvo de ataques racistas na internet após ganhar a coroa de miss).

“As pessoas diziam para ela se matar, que ela era uma vergonha. Conversar com Monalysa sobre o que essas coisas a ensinaram, como construíram quem ela é e como podem inspirar outras pessoas é incrível. Não é preciso ser cientista ou empreendedor. Qualquer um pode desejar algo e alcançar”, raciocina Tidey, cujo tom, que ora lembra um escritor de livros de autoajuda, aparenta ser a expressão sincera de cidadão mundial que, depois de trabalhar com tantas coisas diferentes, provavelmente descobriu sua vocação principal, a de desbravar histórias e talentos. 

 
Garotos que não amavam os Beatles nem os Rolling Stones
Não que Graham Tidey tenha se tornado “menos inglês” por causa dos seis anos de vivência no Brasil, mas essa razoável temporada o tem feito refletir sobre a valorização de culturas e personagens locais. Instado por mim a opinar sobre a veneração do público brasileiro a grupos de rock ingleses como Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd e Led Zeppelin, o cônsul diz que poucos amigos de sua juventude conheciam mais do que duas ou três músicas dessas bandas e assume o semblante de quem tem dificuldade para compreender como um país com a produção cultural brasileira pode parar para prestar atenção em ícones da indústria cultural forjados décadas atrás, a milhares de quilômetros daqui.

Sua imersão na vida pernambucoana rendeu, entre outros frutos, uma longa entrevista com Alceu Valença, dividida em cinco vídeos. No mais extenso deles, de 14 minutos, o cantor relembra que durante um curso que fez nos Estados Unidos na década de 1960 foi chamado de Bob Dylan brasileiro - para admiração de Tidey. “Incrível”, exclama o cônsul, que, em seguida, pergunta o que o são-bentense faz para “aumentar seu nível de criatividade.” 

“A criatividade é espontânea, eu não faço absolutamente nada”, responde Alceu, emendando com a história do nascimento da música Anunciação. “Eu ia andando com uma flauta e, tocando a melodia que vinha à minha cabeça, fui até o Mosteiro de São Bento. De repente, uma pessoa ouviu e me disse ‘Eita, que música bonita danada’”, narra o pai da Morena tropicana a um ainda mais estupefato Graham, que assumidamente fez do limão uma limonada ao unir as vidas de cônsul e youtuber. 

“Se eu ligasse para Drauzio Varella dizendo ‘Sou Graham e quero te entrevistar, ele perguntaria ‘quem é você. Mas sendo cônsul, é mais fácil ele me receber”, exemplifica. Do médico que se notabilizou ao narrar suas experiências no maior presídio de São Paulo através do livro Estação Carandiru, Graham levou para a vida a história de um preso que sempre estava radiante, apesar de sua ruinosa situação, para que sua mãe não pensasse que ele era uma pessoa triste. 

“Maria da Penha foi baleada pelo marido nas costas e ia a festas de cadeira de rodas, ainda se recuperando dos ferimentos, só para alegrar sua mãe. Isso não faz nenhum sentido, a menos que você seja um ser humano. Um robô ou um bicho não fariam isso. Porque somos humanos, queremos ser felizes e fazemos coisas estranhas”, filosofa. 

O conjunto de entrevistas – que também inclui o mago dos bitcoins Marco Carnut, o cantor Pedro Mariano e o pesquisador Sílvio Meira – pode tomar um significado ainda maior do que Graham imaginou. Muito além de inspirar pessoas para alcançarem seus objetivos, In Conversation tem potencial de se tornar um retrato de pensadores e formadores de opinião de Pernambuco e do Brasil a ser consultado daqui a décadas, quando, lá na Inglaterra, o reinado de Elizabeth II talvez já tenha chegado ao fim.


FRASES
“A vida de sucesso de qualquer pessoa é cheia de fracassos. Eu tive vários na minha vida. Fiz concursos e não passei, e aquilo só me deu mais força. O fracasso é o maior professor”
Janguiê Diniz, empreendedor da educação

“Nos anos 80, eu era conhecidíssimo já, mas saía sozinho em Olinda, com uma cerveja na mão e uma gatinha do lado, numa boa. Hoje, se você não tirar selfie, as pessoas se sentem agredidas” 
Alceu Valença, cantor

“As pessoas nunca deram ouvidos à minha opinião sobre preconceito, nem na minha família, que reproduzia a discriminação. Só quando passei a aparecer na TV, minha família pensou: ‘Será que ela 
tem razão?’”
Monalysa Alcântara, miss Brasil 2017

“Nunca fui perfeccionista. A perfeição não existe. Se eu tirar os óculos aqui, vejo manchas pretas. Na hora que eu descobri que o mundo era imperfeito a começar por mim mesmo, resolvi um monte de assunto na minha vida”
Sílvio Meira, pesquisador

“Meu trabalho é tão profundamente mesclado com minha vida como um todo, que de vez em quando tenho que mudar de vida para a vida parecer vida”
Marco Carnut, CEO do Coinwise

“Toda mulher tem medo de denunciar, isso é normal, não apenas pela questão financeira, mas porque o agressor pede perdão e diz que não vai acontecer, mas acontece, cada vez de forma mais intensa, até chegar a um assassinato”
Maria da Penha, farmacêutica e ativista 

“São 29 anos frequentando cadeias. Meus amigos carcereiros falam que no ano que vem serão 30 anos, a pena máxima, e que eu serei libertado queira ou não”
Drauzio Varella, médico

“Desde que minha filha nasceu, mudei alguns hábitos. Nove, nove e meia da noite eu estou dormindo, porque optei por levá-la à escola. Virou um efeito cascata. Mudei a alimentação. Hoje, aos 43 anos, me sinto melhor que quando eu tinha 36”
Pedro Mariano, cantor
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