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Hobsbawm no Recife: veio, viu e não gostou

Historiador britânico espantou-se com a 'pobreza extrema' e viu 'sinais de rebelião'

Publicado em: 20/03/2018 07:20

''Qualquer pessoa que queira saber o que é uma região subdesenvolvida poderia começar pelo Recife'', afirma Hobsbawm. Foto: Juan Esteves/Divulgação
 (Foto: Juan Esteves/Divulgação
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''Qualquer pessoa que queira saber o que é uma região subdesenvolvida poderia começar pelo Recife'', afirma Hobsbawm. Foto: Juan Esteves/Divulgação (Foto: Juan Esteves/Divulgação )


Um dos historiadores mais brilhantes do mundo esteve no Recife em 1963 - e espantou-se com o que viu. “A população parece não ter tido uma refeição completa há dez gerações: raquítica, baixa e doente”, escreveu ele, em artigo publicado em julho de 1963 na New Statesman, revista britânica de esquerda. O autor já era um intelectual reconhecido na Inglaterra, e que estava prestes a ser celebrado internacionalmente: Eric Hobsbawm (1917-2012).

“Qualquer pessoa que queira saber o que é uma região subdesenvolvida poderia começar pelo Recife, a capital do empobrecido Nordeste brasileiro - aquela vasta área de cerca de 20 milhões de habitantes que deu ao país os seus mais famosos bandidos e revoltas camponesas, e ainda lhe fornece um fluxo de migrantes subnutridos”, descreve Hobsbawm. “Recife tem 800 mil habitantes, bem mais do que o dobro da população em 1940; metade vive nos barracos indescritíveis que cercam todas as grandes cidades sul-americanas, em meio ao cheiro característico das favelas tropicais: imundície e decomposição de matéria vegetal. Como vivem, ninguém sabe. Assim como na maioria das outras cidades da América do Sul, não há indústria suficiente para absorver esses fluxos de imigrantes”.

Foi a sua primeira visita à América Latina, região que mais tarde ele diria ser aquela em que, depois da Europa, era a que mais conhecia e onde mais se sentia em casa. A viagem foi viabilizada por uma bolsa que ganhou da Fundação Rockfeller. Incluía o Brasil, Argentina, Chile, Peru, Bolívia e Colômbia. A primeira cidade na qual desembarcou foi o Recife.

“Há pobreza extrema em todos os lugares”, continua ele, na descrição da capital pernambucana. “(...) Ao mesmo tempo, há sinais de rebelião. As bancas de jornal estão repletas de literatura de esquerda: Problemas da Paz e do Socialismo, China em Reconstrução e o jornal das Ligas Camponesas, que são fortes nessa região. (Mas há também uma abundância de Bíblias.) O estado do qual o Recife é a capital acaba de eleger um governador bastante de esquerda, graças principalmente ao voto dos trabalhadores da cidade. As pessoas do campo - ex-escravos das fazendas de açúcar e algodão, pequenos camponeses do Sertão - são em grande parte analfabetas e, portanto, não votam. A força das ligas camponesas é irregular e não se tem a impressão de que fizeram muitos progressos ultimamente, mas o potencial de organização é imenso”.  Referindo-se à tática de ação das Ligas, que usavam exemplos de santos e de Fidel Castro para destacar a necessidade de lutar por melhorias sociais e pela tomada do poder, Hobsbawm conclui: “Se alguma parte do mundo precisa desse conselho útil, é essa região terrível”.  

Quando escreveu este artigo, o historiador já havia publicado dois livros que não causaram grande repercussão (Labour’s turning Point, em 1948, e Rebeldes primitivos, 1959), e um terceiro, que lhe daria mais tarde fama mundial, acabara de sair, A Era das Revoluções (lançado em 1962). O texto sobre o Recife foi incluído em livro póstumo dele, que reúne artigos e ensaios (Viva la Revolución, 2017, Companhia das Letras).

No período em que Hobsbawm esteve no Recife, Pernambuco inteiro encontrava-se em ebulição: Miguel Arraes fora eleito governador, por uma ampla frente de esquerda, e as Ligas Camponesas estavam no auge. E a América Latina respirava revolução: Fidel Castro e seus guerrilheiros haviam triunfado em Cuba, em janeiro de 1959. A imprensa internacional cobria os acontecimentos dos países latinos como se buscasse prever aonde aconteceria a próxima revolta. “Pobreza do Nordeste brasileiro gera ameaça de revolta”, bradava a primeira página do The New York Times em reportagem de Tad Szulc (31/10/61). “Marxistas estão organizando camponeses no Nordeste”, dizia a reportagem do dia seguinte, no mesmo jornal.

“Não havia intelectual (de esquerda) na Europa ou nos Estados Unidos que não sucumbisse ao feitiço da América Latina, continente onde aparentemente borbulhava a lava das revoluções sociais”,  afirmou Hobsbawm, em sua autobiografia (Tempos interessantes), lançada cerca de 40 anos depois desses acontecimentos. O Nordeste - com sua fome e seca seculares, com a ascensão de líderes políticos de esquerda, a radicalização da luta no campo e consistente movimento pró-desenvolvimento, puxado pela Sudene sob o comando de Celso Furtado -  tornou-se na época campo de provas da política externa americana e roteiro obrigatório de quem visitava a América Latina para observar de perto os conflitos. Um período pouco abordado na historiografia nacional e que ainda tem muita história a ser contada.
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