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Liberdade, ainda que tardia, para Maria da Silva

Privada de direitos, ela trabalhou em casas de família por toda vida. Agora, vive em um abrigo

Publicado em: 09/01/2018 07:19

Foto: Gabriel Melo/Esp. DP
O corpo de Maria Soares da Silva está cansado. Castigado pela artrose, pressão alta e glaucoma. A maior parte de seus 88 anos de vida foi gasta em trabalhos pesados nas “casas de família”. Tinha dia de Maria dormir de madrugada, perdida em uma infinidade de serviços. Lavava, passava, cozinhava e cuidava do resto da casa. No dia seguinte, não tinha hora certa para acordar. Nem carteira assinada teve direito durante muito tempo. Maria foi tragada por essa rotina dos 12 aos 78 anos. Há dez anos, exigiu sua carta de alforria. Decidiu, por conta própria, viver em um abrigo de idosos. Já não se sentia útil na casa dos outros. Também não construiu família, nem estudou. Não lhe deram tempo para esses “luxos”. No Abrigo Cristo Redentor, em Cavaleiro, Jaboatão dos Guararapes, onde Maria vive, 30% das mulheres hospedadas vieram de “casas de família”. Depois de terem sugadas suas juventude e força, foram morar no espaço. Lá, 80% das pessoas não têm mais laços com a família. Em outras palavras, foram abandonadas. 

A história de Maria incomoda porque fala de uma serventia descartável de um ser humano “domesticado” desde criança para servir. Sem direitos básicos, como carteira de trabalho, tempo adequado de descanso e acesso a estudo, Maria repetiu por toda a vida uma saga parecida com a de seu povo ancestral negro. “Trabalhava feito escrava. Não tinha hora de acordar, de deitar. Eu era que só um burro de carga. Não tinha condição de estudar. Só querem a gente quando a gente tá trabalhando. Somente agora me sinto livre.” 

Já idosa e sem ter o próprio lar, Maria passou parte do tempo obrigada a dormir nas casas alheias, uma porta aberta para a exploração de sua mão de obra analfabeta. Adotada por uma família quando ainda criança depois de "enjeitada" pelos pais biológicos, saiu de casa cedo para trabalhar cuidando de crianças dos outros. Se voltasse no tempo, tem uma coisa que Maria faria diferente na vida: teria estudado. “Eu ia exercer outra função. Botar um negócio para mim. O que fiz de errado na vida foi não ter estudado. Sofri muito para sobreviver. Chorava. Era muito trabalho na casa dos outros. Se fazia 100% ainda não era satisfatório.” 

Parece irônico. Mas Maria passa os seus últimos anos de vida em um antigo engenho, o Jangadinha, mais tarde transformado no Abrigo Cristo Redentor, mantido pelo Rotary Club. Divide os dias junto com mais de uma centena de idosos e idosas. A única visita que recebe é a de uma ex-patroa, hoje sua responsável no abrigo, com quem sai para almoçar e de quem recebe cerca de R$ 200 referentes à parte de sua aposentadoria. O restante do valor é usado para pagar a estadia no abrigo. Com o troco, Maria costuma comprar lanche. “Sou mais feliz hoje. Estou no meu canto. Ninguém vem mexer comigo porque sei viver com todo mundo. Gosto muito daqui. Tem comida boa. Tem passeio.”

A história de Maria também faz lembrar as recentes discussões sobre trabalho escravo no Brasil. Em dezembro do ano passado, o governo federal publicou a portaria 1.293, que substituiu a polêmica portaria 1.129, de outubro, que dificultava a libertação de pessoas em condições de trabalho análogas a de escravo. No antigo documento, o governo condicionava a libertação apenas em casos de cárcere privado com vigilância armada. Com a nova portaria, configuram o crime a condição degradante de trabalho, a jornada exaustiva, a servidão por dívida e o trabalho forçado. Maria é prova de que os escravos estão vivos. 
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