Comportamento Quem se lembra o que era ser criança? Especialistas atribuem ao capitalismo o processo de adultização que vem acelerando o tempo de crianças e adolescentes, deixando no passado uma outra ideia de infância

Por: Patrícia Fonseca - Diario de Pernambuco

Publicado em: 22/06/2015 15:59 Atualizado em: 22/06/2015 17:19

As crianças não têm maturidade psicológica e ficam reféns de objetos culturalmente valorizados, como o consumo. Arte: Jarbas/DP/D.A Press
As crianças não têm maturidade psicológica e ficam reféns de objetos culturalmente valorizados, como o consumo. Arte: Jarbas/DP/D.A Press

"O que você vai ser quando crescer?" Talvez em nenhuma outra época, essa pressa em antecipar a vida adulta tenha sido tão ostensiva. Vivemos uma fase de debates sobre a redução da maioridade penal, o crescimento da taxa de trabalho infantil, das crianças estressadas com agendas lotadas, das escolas que ensinam empreendedorismo e se voltam para o vestibular ainda na educação infantil, das meninas desfilando roupas sexy, sapatos de salto e sutiãs com enchimento. O que está por trás e a quem serve essa aceleração do "crescimento"? Especialistas em educação, psicologia, saúde, apontam o capitalismo como propulsor de uma engrenagem viciosa. Os pais se ausentam cada vez mais para se dedicarem a um mercado de trabalho competitivo e opressor. O poder público não oferece educação e lazer de qualidade que livre as crianças da convivência danosa nas ruas, quando não são elas próprias expostas ao trabalho como forma de sobrevivência. As de maior poder aquisitivo, também afetadas pelos apelos consumistas da televisão, são cobradas a se preparar para um futuro profissional que garanta mais que retorno pessoal, financeiro. Culpados, os adultos cedem sua autoridade aos filhos, dando voz excessiva a quem quer e precisa, na verdade, ouvir e aprender.

Há bem pouco tempo, a preocupação nas brincadeiras de rua era quem seria a polícia e quem seria o ladrão, quem faria o papel do xerife e quem assaltaria a diligência, num faz de conta sem consequências. Hoje, há urgência em rotular e tratar como criminosos garotos em situação de conflito, abandono, marginalização, enquanto se deixa de cobrar ao estado e à família cuidado, proteção, educação e oportunidades para que eles não se voltem às drogas, à violência, à criminalidade. "No Brasil, apenas 10% de todos os delitos e crimes são cometidos por adolescente e destes, apenas 2% são crimes contra a vida. Esses adolescentes muitas vezes têm um histórico de vida de uma família que não conseguiu dar o devido acompanhamento ao seu desenvolvimento”, aponta Ricardo Oliveira, coordenador executivo do Centro Dom Helder Camara de Estudos e Ação Social (Cendhec).

Expostos a pessoas e grupos que os levam para o consumo de drogas e para os delitos que financiam a compra da droga, lembra Ricardo, esses jovens entram num ciclo de adultização no qual os adultos que os cercam interferem negativamente. Mas para o coordenador do Cendhec, trata-se de um fenômeno também observado em famílias mais abastadas. "Os pais, cheios de compromisso, não oferecem tempo para dar atenção aos filhos e cometem uma violência psicológica contra essas crianças. A ausência é muito grande e às vezes faz com que o adolescente se envolva com determinados atos infracionais”, avalia.


Na opinião da psicóloga e psicoterapeuta Alcione Melo Trindade, os pais não têm essa percepção. Sentem que existe algo errado, mas estão tão mergulhados no dia a dia que não percebem o isolamento social dessa criança. "Quando os adultos cedem seu lugar, os papéis são invertidos, proporcionando espaços e estratégias para que as crianças compreendam essa dinâmica. A criança, na verdade, têm a expectativa que os adultos cuidem dela. Quem vai cuidar dela? Com quem ela vai contar? São autoritárias, dominadoras, mas inseguras. Elas continuam a demandar acompanhamento, atenção, cuidado", reflete.

Encontro antecipado com Eros

Outro aspecto desse processo de adultização frequenta os consultórios de psicologia já há algum tempo, na voz de meninas que deixam de brincar e passam a agir como moças em busca de uma espécie de valorização. "É um fenômeno social. As crianças não querem ser crianças porque o jovem é mais valorizado na sociedade, naquele contexto sociocultural em que elas vivem. Os pais não têm obrigação de saber dessas informações mais técnicas, mas não procuram se informar sobre o que fazer para minimizar esse efeito", pondera. Até mesmo a primeira menstruação (menarca) tem acontecido precocemente, o que, segundo a psicóloga, acontece como um reflexo dos estímulos que estas meninas sofrem, além da alimentação com hormônios.

Realidade que a pediatra e especialista em saúde da família e neonatologia Graça Rocha conhece de perto. A médica tem atendido meninas com idades entre 8 e 9 anos que apresentam queixas de cólicas. Os exames de ultrassonografia e laboratoriais, muitas vezes, já mostram os folículos formados e os hormônios em alta, um organismo pronto para a menstruação. "É impressionante. Isso vem muito da genética, mas também tem relação com a rapidez com que o mundo está correndo. Aos 3, 4 anos, elas chegam no consultório com botas e sapatos de salto alto. Questiono, mostro que faz mal à coluna. A mãe diz que é um desejo da criança, mas na maioria das vezes é a mãe que se proteja nela. São os pais que compram os sapatos, as roupas ou aprovam seu uso. As meninas se vestem como adultas, se maquiam todos os dias para irem à escola com sombra, rímel, blush. Tem alguma coisa errada. Eu falo, mas não adianta", lamenta.

"As crianças não querem ser crianças porque o jovem é mais valorizado na sociedade", diz a psicóloga e psicoterapeuta Alcione Melo Trindade. Foto: Shira Gal/Flickr/Divulgação
"As crianças não querem ser crianças porque o jovem é mais valorizado na sociedade", diz a psicóloga e psicoterapeuta Alcione Melo Trindade. Foto: Shira Gal/Flickr/Divulgação
Quando menstrua muito cedo, a criança não cresce em altura o tanto quanto poderia. Mas as consequências não param por aí. "No início, a menina se acha 'top' por ter menstruado antes das amigas. Depois acha chato porque tem que lidar com aquilo todo mês, e quando tem cólica complica tudo; ela não pode tomar medicamentos mais específicos como as adultas ", explica a pediatra. Além disso, ressalta a especialista, todo o ciclo de fertilidade do organismo é iniciado, já que com a menstruação precoce, o tempo de fertilidade termina mais cedo e a menopausa também é antecipada. "Vem toda uma dinâmica. Ela vai ter que passar por uma preparação para não engravidar. Geralmente, os anticoncepcionais só devem ser utilizados depois dos 10, 11 anos, mas sempre com prejuízos porque não há formulação indicada para essa faixa etária".

Isso sem falar no descompasso entre corpo e mente. Graça Rocha cita o exemplo do parto que fez em uma menina de 11 anos que, por conta da estrutura óssea de criança de sua bacia, não conseguia expulsar o bebê naturalmente. “Ela não conseguia entender o que estava acontecendo”, recorda a médica, lembrando que precisou ser didática: "Seu filho está querendo nascer. Por baixo, ele vai sofrer e pode nascer sem vida. Prefiro abrir sua barriguinha". No dia seguinte, ela foi ao apartamento examinar o bebê e conversar com a mãe. "Disse a ela: Não é uma boneca. Você precisa dar de mamar e tomar conta'. Mas ela não tinha as mamas formadas. Os ductos que levam o leite ainda estavam em formação".

Com físico, emocional e cognitivo em formação, apesar de “empoderadas”, articuladas e donas de respostas inteligentes, as crianças não têm maturidade psicológica para conteúdos verticais e ficam reféns de objetos culturalmente valorizados, como o consumo e a comunicação de uma forma geral. As que se encontram em vulnerabilidade econômica sofrem mais duramente com este ciclo de dominação. Pesquisa da World Childhood Foudation (WCF) revela que 65% das meninas exploradas sexualmente declaram usar o dinheiro obtido com a prostituição na compra de aparelhos de telefone celular, tênis ou roupas. De acordo com a psicóloga Alcione Melo Trindade, as indústrias de consumo utilizam as crianças em função de seus objetivos, por um consumo desenfreado, desrespeitoso. "O Brasil é um país em que a mídia se recusa a ter censura, a limitar o acesso de conteúdos violentos a que nossas crianças são expostas diariamente na TV. Negam-se, baseados na liberdade de expressão, mas mostram mulheres nuas no carnaval, essa objetivação da mulher, programas policiais violentos na hora o almoço. Enquanto isso, as entidades lutam para categorizar esses programas e afastá-los da visão das crianças, mas não conseguem, porque o poder econômico inibe isso".

(Des) educação
Além das atividades extracurriculares que se amontoam na agenda desde a infância, o ensino formal também é questionado pelos especialistas. Se é fato que lugar de criança é na escola, também é verdade que algumas instituições começam a entrar nesse ritmo acelerado e oferecer, ainda na educação infantil, conteúdos que adultizam os estudantes. Entre exemplos tirados de escolas do Recife estão aulas de empreendedorismo, preparação precoce para o vestibular e gincanas onde os alunos são orientados a criar empresas, cuja vencedora é a que consegue vender mais. Para muitos, trata-se de uma desvirtualização da educação. A competição é importante, mas pode ser feita, por exemplo, com jogos.

"As crianças são autoritárias, dominadoras, mas inseguras. Elas continuam a demandar atenção e cuidado", reflete a psicóloga e psicoterapeuta Alcione Melo Trindade. Foto: Sonny Abesamis/Flickr/Divulgação
"As crianças são autoritárias, dominadoras, mas inseguras. Elas continuam a demandar atenção e cuidado", reflete a psicóloga e psicoterapeuta Alcione Melo Trindade. Foto: Sonny Abesamis/Flickr/Divulgação

"Piaget já falava : Não adianta apresentar o conteúdo cognitivo. A criança pode decorar, mas não vai aprender. Isso prejudica porque ela não tem tempo de curtir aquele conteúdo e a delícia de descobrir determinados assuntos. Quando você consegue aprender com seus próprios recursos, seu raciocínio lógico deslancha. Quando você antecipa esse raciocínio, a criança não dá conta, não vai compreender. Isso pode afetar a autoestima”, afirma a psicóloga Alcione Melo. A especialista ressalta que cada um tem o seu tempo de aprendizagem e, se há algum déficit, a capacidade de acreditar em si mesmo vai piorando. A escola, quando antecipa, diz ela, não respeita o desenvolvimento psicológico. “Como consequências, temos a evasão escolar e a desvalorização da escola".

Para a pedagoga Zélia Porto, doutora em política da educação e educação infantil pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), como caixa de ressonância do que acontece no mundo, a escola começa a colocar nos projetos pedagógicos essas “modernidades”, mas sai do seu principal objetivo. "A escola deveria estar preocupada em ajudar a criança a formular essa crítica, deveria ser lugar para a formação integral, consciência e apropriação do conhecimento para a idade adequada e não para a profissionalização, empreendedorismo. A criança tem que brincar e produzir cultura e não produzir coisas do mundo adulto”, defende. “A escola é lugar e tempo pedagógico de organização da cognição, solidariedade, conhecimento próprio. Se não, estará da mesma forma que a sociedade, com interesse no consumo e não na formação como sujeito humano, que está ali para ser solidário e aprender", defende.

Apesar de tantos estímulos e pressões, a psicóloga Alcione Melo não acredita que a infância esteja sendo "extinta". Para ela, o que existe são novas formas de inserção na comunidade, com novos modos de vivenciar a infância, uma vez que, na sociedade atual, a juventude seria a fase da vida mais valorizada. "Todos querem ser jovens para serem aceitos e esses mecanismos criados a favor dos jovens vão achatando a infância e prorrogando indefinidamente essa adolescência. Um exemplo disso é a geração "nem nem" (nem estuda e nem trabalha)", aponta.

O tempo parece mesmo ter “acelerado” e, embora não tenha engolido a infância de vez, faz tudo parecer mais rápido, efêmero, passageiro. Alcione Melo e Zélia Porto ressaltam a força da internet e das redes sociais nesse contexto, em um processo que embaralha os lugares e papeis. "Se você olhar os meninos de antigamente, percebe que eles se vestiam como adultos em miniatura. Hoje, isso volta a acontecer e todos assistem a um mesmo programa de TV, geralmente não adequado para a faixa etária infantil. As crianças têm agora o poder do consumo, mas não sabem o que é bom pra elas. A criança cria cultura, é um ser capaz de criar conhecimento, mas o adulto precisa dar esse limite para que, com o tempo, ela aprenda a controlar impulsos, o consumo exacerbado. A criança adultizada é commodity ou mercadoria", diz.



MAIS NOTÍCIAS DO CANAL