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Bolsonaro sofre desgaste com a Copa América em qualquer cenário, avaliam especialistas

Publicado em: 07/06/2021 07:21

 (Foto: Marcos Correa/ Arquivo / PR - 14/6/19)
Foto: Marcos Correa/ Arquivo / PR - 14/6/19
Ao anunciar a realização da Copa América, no Brasil, o presidente Jair Bolsonaro não calculava que daria início a mais uma crise política de seu governo. A realização do torneio colheu reações contrárias de vários setores da sociedade e chegou ao campo de jogo, envolvendo os atletas e o técnico da Seleção Brasileira, Tite — que deram a entender ser um erro a disputa da competição em pleno descontrole da Covid-19 no país.

A crise subiu mais um degrau, ontem, com o afastamento por 30 dias do presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Rogério Caboclo, personagem com o qual o Palácio do Planalto mantinha interlocução e contava para que debelasse as resistências dentro do elenco e da comissão técnica. O quadro se desenha como uma derrota para Bolsonaro dentro das quatro linhas — e no momento em que o país soma 473.404 mortos pela pandemia, segundo números coletados pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).

Para analistas políticos, Bolsonaro fez uma aposta alta em bancar a Copa América. Professor de sociologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Geraldo Tadeu afirma que o afastamento de Caboclo piora muito a situação do presidente. Para ele, a mudança nesse momento pode significar que Tite seja mantido como técnico da Seleção — o que desagrada o Planalto e os bolsonaristas, que fazem campanha para que Renato Gaúcho ocupe o posto.

Jogo de perde-perde
Segundo Tadeu, o presidente mirou na vinda da competição para ajudar a desviar o foco dos problemas que vem enfrentando, como a CPI da Covid. “Não tem pão, vamos dar circo. Essa aposta foi feita de forma atabalhoada. Achou que todo mundo ia apoiar a ideia, só que se deparou com uma oposição importante. Se não for realizado (o torneio), é desgaste. Se for, também. O custo político é alto em todos os sentidos”, afirma.

Mesmo que a Seleção não se negue a jogar — sobretudo se um novo técnico assumir e convocar jogadores que substituam aqueles que não aceitarem participar da competição —, o presidente deve enfrentar protestos, ações no Supremo Tribunal Federal (STF) e críticas internacionais, segundo Tadeu. Ele avalia que uma rebelião dos atletas faz com que o cenário da pandemia no país não seja visto como mera oposição ao governo, mas “passe a ser uma questão popular, de grande repercussão”. “Bolsonaro tentou uma cartada muito alta, em um momento de queda de popularidade. Provavelmente, não contava com a oposição dos jogadores”, salienta.

Tadeu observa, ainda, que o boicote de jogadores e atual comissão técnica à Copa América se refletirá na cadeia política de bolsonaristas ligados a clubes e federações de futebol, eficientes instrumentos de influência política e eleitoral.

O analista político André Pereira César endossa a impressão de que a corrosão de Bolsonaro vem crescendo exponencialmente. Observa que utilizar um dos pilares da cultura brasileira e esporte mais popular do país, para tirar o foco da agenda negativa, tem sempre grandes chances de dar errado — sobretudo porque há precedentes históricos (leia abaixo).

Bases mobilizadas
As bases do presidente acusaram o golpe. Alguns dos seus principais porta-vozes se movimentaram para tentar reverter o placar da deterioração, mobilizando as redes sociais contra o técnico Tite — eleito pelos bolsonaristas o culpado pela crise. Ontem, o senador Flávio Bolsonaro (Patriotas-RJ) publicou um vídeo chamando o treinador de “hipócrita” e “puxa-saco” do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Faço um apelo especial aos jogadores da Seleção. Não se deixem ser usados num momento como esse”.

Cientista político da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Adriano Oliveira frisa que o presidente perde em qualquer cenário, seja com a realização ou não dos jogos. “O presidente não entendeu que é um jogo que ele não sairá vencedor”, afirma.

Analista político do portal Inteligência Política, Melillo Dinis diz que, com a eventual negativa da Seleção, o presidente vê sua influência se reduzir “nesse espaço social importante que é o futebol”. Para ele, o custo político aumenta com a saída de Caboclo do comando da CBF.

Quando o Planalto usou a Seleção para ficar bem na foto

 (Foto: Arquivo/CB/D.A Press - 6/70)
Foto: Arquivo/CB/D.A Press - 6/70

“O presidente escala o ministério dele que eu escalo meu time”. A suposta reação de João Saldanha, então técnico da Seleção Brasileira no período que precedeu a Copa do Mundo, em 1970, à pressão para que convocasse o atacante Dario — o Dadá Maravilha — para agradar o então presidente da República Emílio Garrastazu Médici, é somente a constatação do fato de que os atores políticos sempre compararam a seleção a uma substância potente o suficiente para remover as manchas históricas dos governos.

A resposta do gaúcho Saldanha, comunista confesso, irritadiço e dado a aumentar episódios que o envolviam, carece de confirmação, mas, por ser ferina e se adaptar à imagem do “João Sem Medo” que construiu de si mesmo, tornou-se uma quase verdade nos contextos do futebol e da política. Mesmo porque, por coincidência ou não, assim que Mario Jorge Lobo Zagallo assumiu o comando da seleção, convocou Dario e o levou ao México.

Médici não é lembrado apenas por estar à frente do governo num dos períodos mais brutais do país, em plena vigência do Ato Institucional nº 5, mas, também, por frequentar a tribuna de honra do Maracanã nos jogos do Flamengo — apesar de, gaúcho que era, ser Grêmio em Porto Alegre. A imagem dele com o radinho de pilha grudado ao ouvido foi meticulosamente construída para torná-lo popular e moldar uma aparência gentil, em contraste ao temor que exalava por ter sido, pouco tempo antes, diretor do sinistro e onipresente Serviço Nacional de Informações (SNI).

Dessa época, uma frase emerge para definir a associação do futebol com a política, sempre que foi necessário lustrar a imagem do regime e aprofundar a influência do Palácio do Planalto nos estados: “Onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional”. Arena era a legenda de apoio ao governo, no sistema bipartidário de oposição consentida ao MDB. Nacional era o Campeonato Brasileiro, que chegou a ter 94 clubes disputando a edição de 1979 — quando o almirante Heleno Nunes era o presidente da então Confederação Brasileira de Desportos.

Nenhum interesse dos aliados do regime ficava ao desamparo na CBD. Além de inchar a principal competição de futebol do país, a entidade fazia presidentes de federações estaduais, dirigentes de clubes nas capitais e no interior e, sobretudo, interferia na Seleção. Para a Copa de 1978, numa Argentina que desde 1976 vivia sob ditadura militar, promoveu a troca do técnico Osvaldo Brandão pelo capitão do Exército Cláudio Coutinho num episódio até hoje mal explicado. Uns atribuem a saída do gaúcho Brandão apenas ao 0 x 0 com a então fraca Colômbia, em Bogotá, em 20 de fevereiro de 1977 — no jogo da volta, no Maracanã, o Brasil goleou por 6 x 0, em 9 de março. Outros dizem que o empate foi apenas um pretexto para colocar, à frente da Seleção, um militar cantado em verso e prosa pela maior torcida do país, a do Flamengo, time que treinava e no qual implantara um moderno sistema de jogo.

Coutinho entrou para a história da Seleção também como aquele que disse ter sido o Brasil o “campeão moral” da Copa da Argentina — terminou em 3º lugar, depois que os donos da casa foram à final ao golearem o Peru por 6 x 0, num jogo de resultado suspeito. O general Jorge Rafael Videla entregou a taça Fifa aos seus compatriotas, que derrotaram a Holanda, e tocava um regime cuja repressão aumentava exponencialmente. No Rio, os jogadores brasileiros desembarcavam sob a presidência de Ernesto Geisel, que promovia a abertura “lenta, gradual e irrestrita”.
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