Opinião Tiago Lima: Das coisas da vida Tiago Lima é advogado, sócio de Lima & Falcão Advogados

Publicado em: 13/11/2017 07:23 Atualizado em:

Outro dia, deparei-me novamente com o longa Les choses de la vie, de Claude Sautet. O filme inspirou Frida Boccara a gravar L’année où Piccoli, e retrata flashes na memória de um engenheiro francês após um acidente.
As coisas da vida acontecem com um certo grau de normalidade nas sociedades mais avançadas. Causam dores, tristezas. Mas essas sociedades cultivaram um enorme apego à educação, à ciência, à arte, à saúde. Outras, como a nossa, incorporaram ao cotidiano as mortes por balas perdidas, chacinas, desemprego, violência urbana, infâncias de abandono, privilégios de pequenas castas. 
Quem assistiu à série Selfrigdes percebe essa tensão na Londres do início do século 20, descortinando a distância entre aristocratas ingleses e o yankee da famosa loja, às vésperas da I Grande Guerra, marcada pela inovação, sinceridade e empreendedorismo de uns, ante a hipocrisia, egocentrismo e manutenção de privilégios de outros, nesse milenar conflito entre valores e defeitos humanos. 
O filme de Sautet mostra-nos quão breve é a vida. Em partes do misterioso filme que é a nossa existência, podemos escolher se servimos à sociedade ou se esta deve nos servir a todo custo, a qualquer preço.  
As sociedades onde les choses de la vie acontecem com um certo grau de normalidade, enxergaram, de forma perspicaz, como poderiam manter a própria riqueza. Enxergaram, muitas vezes a duras penas, o quanto é necessário empreender e acumular riquezas em alianças com um espírito inovador, altruísta e patriótico. 
Investiram nos melhores valores humanos, e financiaram – exatamente para quem não nasceu com grandes chances na vida – coisas como educação, ciência, saúde, transporte público, museus, projetos sociais, parques públicos, música. 
Financiaram o futuro dos próprios países quando abriram mão de privilégios e renunciaram à insensibilidade social. 
Por questões humanitárias, por motivos econômicos – pelo mais puro instinto de sobrevivência, saíram das fortificações e escolheram andar nas ruas, derrubando antigos muros de segregação social. 
Unir riqueza, educação, ciência e espírito humanitário é uma grande fórmula de transformação de um país. Mandamos filhos para Harvard, mas não seguimos o exemplo de quem fundou a famosa universidade. 
Repetimos os bordões sobre a “altíssima carga tributária”, dizemos que “lá, eles têm enormes incentivos fiscais”. Contudo, quem de nós faz um projeto de incentivo fiscal para fundar uma universidade de ponta? Ou mesmo investir pesado em alguma na qual estudamos – em muitos casos, gratuitamente? Quem de nós renunciaria a um privilégio financeiro? 
A riqueza só serve à nação quando produz riqueza. A nossa tem produzido uma sociedade perversa, de pobreza, violência, sem transporte público de qualidade, altíssimo desemprego, baixos salários, péssimas escolas, hospitais desequipados. Hordas de pessoas sem perspectiva de vida. Uma nação inteira empobrecendo. Um quadro desolador de desesperança.  
Gosto de brincar dizendo que Marx errou ao tentar unir intelectuais com o proletariado. O que faz nascer uma sociedade justa é a união do capital com a ciência. Do capital com o enfrentamento da injustiça social. Exige renúncia, bom senso. E bom senso é distinguir o legal do injusto, o que é um direito do que é puro privilégio. 
O capitalismo se alimenta de riqueza distribuída. Num paradoxo, concentra e distribui. Combate a presença do estado onde não deve estar, e cobra dele onde deve. Supre a ausência do poder público com grandes iniciativas individuais: doações milionárias a universidades, a órgãos de pesquisa, hospitais, programas sociais, à cultura. E não se esconde em carros blindados e condomínios fechados.
A vida nos reserva situações tristes, angustiantes. São as coisas da vida. Mas a apatia social ne fait pas partie des choses de la vie.


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