Série A dor de ser contado apenas como um número pelo governo Na terceira matéria da série A porta dos invisíveis, o Diario vai contar a história de um homem e de uma mulher que precisaram recorrer à Defensoria Pública de Pernambuco para voltarem a ser enxergados pelo poder público. É como se a dor deles incomodasse, numa sociedade que rejeita aceitar as perdas, está cada vez mais veloz e intolerante

Por: Aline Moura - Diario de Pernambuco

Publicado em: 14/10/2017 09:30 Atualizado em: 14/10/2017 16:37

Na terceira matéria da série A Porta dos Invisíveis, o Diario vai contar a história de um homem e de uma mulher que precisaram recorrer à Defensoria Pública de Pernambuco para voltarem a ser enxergados pelo poder público.
Na terceira matéria da série A Porta dos Invisíveis, o Diario vai contar a história de um homem e de uma mulher que precisaram recorrer à Defensoria Pública de Pernambuco para voltarem a ser enxergados pelo poder público.

O aposentado Paulo Humberto Pedrosa da Silva, natural de Palmares, na Mata Sul de Pernambuco, passou por duas UTIs ao longo dos 56 anos de vida: a clínica e a emocional. Depois de ser obrigado a se aposentar por invalidez em 2008, em virtude de uma estenose severa lombar crônica, dor que lhe provocava desmaios, Paulo não só deixou de ser protagonista na sociedade, aos olhos do governo, como passou a ser contado como um número, ou como aquele que sempre pesa nas contas. Quando ele perdeu o plano de saúde, por falta de condições financeiras, e recorreu ao Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Constituição de 1988 com os conceitos de universalidade e de integralidade, entrou no limiar do esquecimento.

Na terceira matéria da série A porta dos invisíveis, o Diario vai contar a história de um homem e de uma mulher que precisaram recorrer à Defensoria Pública de Pernambuco para voltarem a ser enxergados pelo poder público. Ambos sofrem de problemas de saúde e enfrentam preconceitos de quem está na ponta para atendê-los. É como se a dor deles incomodasse, numa sociedade que rejeita aceitar as perdas, está cada vez mais veloz e intolerante.  

Raramente se veem presidentes, governadores, senadores, deputados ou até mesmo economistas fazendo contas do quanto se perde com a corrupção no país, do quanto poderia ser economizado sem desvios. Mas a saúde é tratada pelos gestores como gasto; o doente, como estorvo. No Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2018, a previsão de gastos com a saúde, por exemplo, é de R$ 119 bilhões, contra R$ 115 bilhões deste ano. Há uma perda estimada de R$ 123 bilhões entre 2017 e 2022, com a aprovação da PEC 241, segundo levantamento da assessoria técnica do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. O Ministério da Saúde não respondeu à reportagem.

Paulo Humberto foi o primeiro paciente de Pernambuco a implantar uma bomba de infusão de morfina intratecal na coluna, em 2008, pelo médico Cícero Lins, numa clínica particular do estado.

Bomba precisa ser reposta a cada sete anos e refil precisa ser trocado de seis em seis meses, no máximo
Bomba precisa ser reposta a cada sete anos e refil precisa ser trocado de seis em seis meses, no máximo
Só que a bomba precisa ser trocada a cada sete anos, o prazo de validade do reservatório dele expirou em 2015 e ele perdeu o plano de saúde depois de se aposentar por invalidez em 2008. O tratamento dele só voltou a ser feito no ano passado, por meio de uma ação movida na Justiça pela Defensoria Pública, para instalar a nova bomba e trocar os refis. O valor bloqueado pela Justiça para realizar todos os procedimentos foi cerca de R$ 100 mil.

“Eu tenho dores crônicas. Quando a dor vem, eu perco a força nas pernas e desmaio. É o limite. Ainda hoje eu convivo com dores 24 horas”, desabafou, para depois completar. “Mas, quando eu ia buscar um hospital público diziam que não tinha tratamento, que eu já era aposentado”, afirmou, protestando pelo fato de, por não poder trabalhar, ter dificuldades de continuar vivendo. Ele já fez oito cirurgias, passou por duas UTIs e tem dez parafusos na coluna.

Antes de se aposentar, Paulo trabalhava como chefe de segurança de uma fábrica em Paulista, que lhe deu todo o apoio quando as dores se acentuaram e ele precisou fazer a primeira cirurgia na coluna, ainda em 2004. Sua luta pela vida já dura mais de 10 anos. A implantação da bomba de morfina é realizada em último caso para dores intratáveis e permite a implantação de um reservatório na região abdominal e um cateter na coluna que libera quantidades muito pequenas da droga na medula espinhal.

“No ano passado, voltei a usar cadeira de rodas o dia inteiro. Fui socorrido para um hospital público, mas, quando souberam que eu era um paciente que já tinha recorrido à Justiça, me deram alta”, declarou. “Se não fosse a Defensoria, que atuou no meu caso, eu tinha ficado tetraplégico, porque sou hipertenso e cardíaco. É difícil alguém estender a mão. Estou usando os recursos liberados, prestando contas com ajuda do defensor Henrique Seixas, e quando tiver próximo de acabar, a Justiça vai bloquear novamente para eu continuar o tratamento até o último dia da minha vida”, declarou.

Para o defensor Henrique Seixas, que atuou na causa de Paulo Humberto, o aposentado não podia esperar. Ele chegou de cadeira de rodas na sede da Defensoria e o seu caso foi tratado com a urgência de todas as dores.


As duas dores de Roseane Cavalcanti

Enfermeira se afastou do trabalho por doença e ficou mais de um ano sem receber auxílio-doença, benefício pago pelo INSS. Foi como estar "no limbo". Crédito: Shilton Araujo/Esp.DP
Enfermeira se afastou do trabalho por doença e ficou mais de um ano sem receber auxílio-doença, benefício pago pelo INSS. Foi como estar "no limbo". Crédito: Shilton Araujo/Esp.DP

O brasileiro é rotulado pelo “jeitinho”, por querer levar vantagem em tudo. Mas quem está fora das generalizações sofre com o mesmo estigma e entra nas estatísticas dos que perdem, a cada dia, seus direitos. A enfermeira Roseane Cavalcanti, 36 anos, é uma delas. Em março de 2016, a pernambucana entrou na lista dos invisíveis e só conseguiu sair no final de setembro deste ano, após uma ação movida pela Defensoria Pública na Justiça. Roseane perdeu o auxílio-doença que recebia do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), mas o médico da empresa onde trabalha exigiu que ela retornasse ao órgão público, por falta de condições de saúde. O INSS ignorou seus recursos, desde então, e ela ficou no limbo por mais de um ano. “O médico da empresa me disse: Roseane, você não aguenta nem um abraço. Não pode voltar a trabalhar”, contou, relatando que tinha tendinite no ombro – principal causa do seu afastamento do trabalho -, no quadril, nas pernas, nas mãos e no joelho.

Roseane fala pausadamente, tem dificuldade de respirar por conta de dores no tórax (costocondrite), e concedeu entrevista ao Diario com as mãos inchadas, em virtude de ter lâminas de água entre a pele e o osso. Ela se afastou das atividades laborais em 27 de dezembro de 2013, pouco antes de entrar de férias, e não conseguiu retornar até então. A cada vez que ia ao médico, recebia um diagnóstico negativo, as medicações surtiam pouco efeito.

Voltar a receber o benefício parecia uma realidade distante, especialmente após a Medida Provisória 739 ser aprovada, em julho do ano passado, e o INSS cortar, praticamente, mais da metade dos auxílios-doenças no país (79,94%) e em Pernambuco (75,08%). A proposta foi tratada como um pente-fino pelo governo federal, sendo renovada este ano por outra MP assinada pelo presidente Michel Temer (PMDB) - a 767/2017 -, agora transformada na Lei 13.457. Desde então, para ser ter uma ideia, apenas 411 benefícios foram convertidos, no estado, em aposentadoria por invalidez, segundo dados do INSS.

De julho de 2016 a agosto deste ano, o Ministério do Desenvolvimento Social considerou que teve uma economia de R$ 2,7 bilhões com o cancelamento dos auxílios-doença, entre eles o de Roseane. Mas a enfermeira não esquece o tratamento que recebeu do médico-perito, quando o INSS decidiu cortar o seu benefício. Foi o dia em que ela se sentiu como se fosse apenas um número, palavra bem diferente de cidadã, e ficou invisível.


“Ele nem olhou para meus laudos”

Em Pernambuco, 14.217 benefícios de auxílio-doença ainda serão revisados este ano, depois de 2.323 serem cancelados em pouco menos de um ano, com uma economia estimada de R$ 42,5 milhões para os cofres públicos do governo federal. Mas, para Roseane, é um desalento ser tratada de forma descartável. “Eu entrei na sala da perícia e o doutor começou a falar que o INSS não tinha como fazer reabilitação para profissionais de nível superior e pós-graduação. 'O que você quer que eu faça, Roseane? Pague uma nova graduação para você?'”, perguntou o médico-périto no atendimento, segundo relatou a enfermeira. “Ele nem olhou para meus laudos”, declarou, sem citar nomes, porém lembrando ter passado mais de um ano sem receber o benefício e sem poder voltar a trabalhar.

Roseane contou que a própria empresa considerou sua enfermidade como “doença no trabalho”, mas o perito recomendou que a ela retornasse ao emprego. “Eu voltei lá no INSS no dia seguinte, entrei com vários recursos, mas eles cortaram de forma totalmente desumana”.



Segundo Roseane, todas as dores no corpo, ora agudas, ora crônicas, foram diagnosticadas após vários exames como sendo fibromialgia, uma enfermidade que atinge principalmente as mulheres. Ela tem dificuldades de fazer tarefas simples, como varrer uma casa, e sofre preconceito até mesmo de alguns amigos, que não entendem. A enfermeira disse que não sabe como se encaixar novamente, embora tenha esperança em retomar sua profissão. “Você fica se sentindo um peso na vida do outro, tem até vergonha de sentir dor, às vezes fica em silêncio, porque a pessoa do seu lado também adoece”, falou, com lágrima nos olhos. “Tem dias que eu não consigo escovar os dentes, pentear os cabelos”, declarou, acrescentando que se sentia humilhada a cada perícia do INSS. “Você sabe que tem direitos, mas não acredita”, acrescentou, dizendo que não lembrava de como era ser cidadã até procurar a efensoria Pública.

Segundo a defensora Jeovana Carmem Colaço Drummond, que atuou na causa de Roseane, os assistidos da Defensoria ganham uma renda mensal de um a quatro salários-mínimos. “O mais difícil para Roseane foi que ela estava com um problema de saúde muito grave e, conseguimos provar na Justiça, com os laudos, e restaurar o benefício dela no mês passado”, contou Jeovana.



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