Agora que a fome voltou à mesa  do brasileiro, retorno a uma cena antiga de novela minha – O Senhor dos Sonhos  –  reconhecendo que ela tem grande semelhança com meu conto Tortura em dia de fome do livro Estão matando os meninos, Editora Iluminuras SP, semifinalista do   prêmio oceanos:

“Anoitecia. Os feirantes desfaziam as barracas, juntavam as mercadorias em sacos e caixas. o velho, as mãos nas costas, parecia sorrir, o mesmo sorriso melancólico e irônico, belo e terno sorriso, de uma beleza esquisita de quem sabe que sem uma grande compaixão, o mundo se transforma em escombros. Recebia saudações e, displicentemente, feito quem não dá atenção àqueles que o respeitam,  respondia apenas com um leve aceno de cabeça.”

“Domingos de Oliveira assistiu quando uma  velha, olhos de ferocidade se iluminaram dentro  da noite, disputou um pedaço de melancia com um cachorro. O animal ainda derramava o suco avermelhado pelos cantos da boca e defendia-se mostrando os dentes alvos e pontudos; o bicho grunhiu, mas se afastou. Olhos de cão ressentidos. Domingos, no entanto, e, sem que a mulher percebesse pois outra vez já se encontrava debruçada sobre a lama de comidas podres; protegido pela escuridão, ofereceu o fruto ao cão. As velhas recolhiam tomates machucados, laranjas imprestáveis, bananas imprestáveis, mangas já cortadas pela metade, goiabas pisoteadas, coentros e pimentões estragados.”

“Cansadas recolhiam restos de comida. E agora, sem que pudessem evitar, misturadas a cachorros, gatos, porcos e bodes. A pouca iluminação ressaltava restos humanos, restos que se amontavam em ossos, sangue, músculos e nervos insistindo em viver. Eram face obscuras, cansadas, de um cansaço tão antigo nos olhos espremidos por rugas.”

“Imaginou que os  pobres são valentes, tão valentes que suportam a ‘“fome, a estupidez, a ingratidão e a ofensa social.”