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As mulheres em tempo de sofrimento

Raimundo Carrero
Membro da Academia Pernambucana de Letras

Publicado em: 22/06/2020 03:00 Atualizado em: 22/06/2020 06:28

Nestes dias de ócio dedico-me a escrever anotações para romances inteiros – personagens, capítulos avulsos, diálogos, futuras novelas, contos ou exercícios para novelas – pesquiso, sobretudo na mídia, a violência contra meninos, jovens e mulheres no Brasil, como venho fazendo desde o começo da década de 1990 quando escrevi e publiquei Somos pedras que consomem, pela Editora Iluminuras. Por isso faço muitas, muitas  leituras, principalmente aquelas leituras de jovens estreantes que se atiram à vertiginosa viagem literária, com os soluços de personagens/autores e das primeiras situações. Encantam-me as primeiras palavras e me surpreendo com o frescor das frases iniciais.

Neste mundo de estreias e de violências contra mulheres encontro a gaúcha Morgana Kretzman lançando Ao Pó, um romance de mulheres que sofrem, atacadas pela estupidez desde a infância, arrastando dores e agonias pelo resto da vida, se podemos chamar de vida um mundo de agressões e de tormentos. Pois assim é que se manifesta sua personagem central.  Se é que existe mesmo uma personagem central nesta obra, além da sistemática violência contra a mulher que para os machões, os indelicados e os estúpidos deste imenso país se transformou quase numa lição de casa.

Esta personagem chama-se Sofia e tem uma vida atormentada desde a  infância quando sofre assédio do tio.  O canalha tio Luís. “Foi por volta dos meus treze anos que ele parou de tocar em mim, de pedir para ficar nua deitada  ao seu lado”, conta a narradora – Sofia – acrescentando que o tio pedia para acariciar os meus pés com o sexo. Mais tarde, o canalha voltaria a incomodar Aline, irmã de Sofia, com algum consentimento da mãe, que se mantinha ausente aos sofrimentos das filhas. Tudo isso transformaria inteiramente o mundo da moça que continua sofrendo, martirizada, num texto de grande qualidade, sem linearidade, muito bem construído e que poderia descambar, facilmente, para a narrativa vulgar, distanciando-se pelas datas que, de certa forma, dão  títulos aos capítulos.

Chamo a atenção para a violenta, marcante e dolorosa cena em que Sofia é currada – como se dizia antigamente – por uma banda de rock numa boate carioca, filmada e vazada numa rede social. Escândalo e dor.

Registro, ainda, que o livro é publicado pela editora Patuá, de São Paulo, com orelhas de Luiz Antônio de Assis Brasil e Andréa del Fuego, enriquecida com a programação gráfica de Alessandro Romio.

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