Confiança A população da Coreia do Norte leva a vida como se não corresse perigo algum No resto do mundo, o temor por uma guerra guera nuclear é crescente; na Coreia do Norte, os testes bem-sucedidos de suas bombas, são festejados

Por: Correio Braziliense

Por: Renato Alves -

Publicado em: 25/09/2017 17:18 Atualizado em: 26/09/2017 11:55

População comemora teste bem-sucedido da bomba H.
Foto: Renato Alves/CB/D.A Press
População comemora teste bem-sucedido da bomba H. Foto: Renato Alves/CB/D.A Press

Enquanto o resto do mundo teme uma guerra nuclear, a Coreia do Norte festeja. A capital, Pyongyang, tem shows diários desde 3 de setembro, quando ocorreu o bem-sucedido teste atômico destinado aos mísseis balísticos intercontinentais. Militares, estudantes, mulheres, jovens e crianças cantam e dançam ao som de músicas com temas que exaltam o poder destrutivo da sua bomba de hidrogênio.

 

Imagens de armas e tropas nacionais são exibidas exaustivamente no solitário canal de televisão permitido à população. O único jornal, também do governo, sempre traz na capa fotos e textos sobre os avanços do programa nuclear. A maçante propaganda oficial convence os norte-coreanos da superioridade sobre os inimigos norte-americanos, sul-coreanos e japoneses. Por isso, levam a vida como se não houvesse o risco de destruição de suas cidades e mortes em massa.

 

Estava em Pyongyang em 3 de setembro. Não havia outro jornalista estrangeiro na Coreia do Norte no dia do teste nuclear e no período da sua repercussão, segundo as autoridades com quem mantive contato. Tratavam-me como a testemunha ocidental da maior façanha do país. Recebi a confirmação do sucesso em primeira mão. Fui apresentado à equipe que desenvolveu a bomba de hidrogênio e tornou seu teste possível.

 

Na manhã do dia 7, o carro que sempre me conduzia foi colocado em fila com outros quatro iguais. Neles seguiam cinco estrangeiros, de profissões distintas. Partimos do hotel sob escolta policial. A certa altura, entramos numa comitiva maior. À frente, em micro-ônibus, seguiam os cerca de 500 participantes da criação da arma — especialistas em energia nuclear, engenheiros militares, entre outros.

 

[FOTO 1]

 

O grupo havia passado por algumas das principais avenidas de Pyongyang, onde milhares de pessoas de todas as idades, muitas balançando flores, os saudaram como heróis nacionais. Levaram-nos ao Palácio do Sol, em Kumsusan, a nordeste de Pyongyang, onde estão os corpos embalsamados dos dois primeiros líderes norte-coreanos — o prédio serve como mausoléu para os corpos de Kim Il-sung, fundador e “Presidente Eterno” do país, e Kim Jong-il, seu filho e sucessor. Lá, após esperar meia hora, cruzei com os integrantes do projeto nuclear. Eu e outros 20 estrangeiros (turistas) seguimos por uma esteira rolante enquanto os militares e cientistas vinham no lado oposto, em outra esteira. Meu guia e intérprete citava a função de cada grupo, identificado pelos uniforme e pelas medalhas entregues minutos antes por Kim Jung-un.

 

Os poucos norte-coreanos autorizados a conversar comigo faziam questão de destacar a importância do momento. Traduziam cada palavra do pronunciamento oficial de Kim Jung-un, no dia 3. Um anúncio sem a voz do líder, que nunca dá entrevista nem faz discurso oral. A confirmação do sucesso do teste veio pela TV estatal, com fotos de Kim cercado por cientistas e militares, e a narração dramática da mais famosa apresentadora do país, já aposentada, mas convocada para a ocasião.

 

Três horas antes, havia sido convocado para estar às 18h (hora local), sem atraso, no lobby do hotel, para assistir a uma “top news” em um dos aparelhos de televisão das áreas comuns do estabelecimento. Acompanhei o comunicado do sucesso do teste da bomba de hidrogênio ao lado de oito funcionários do hotel, do meu intérprete e de uma pesquisadora escalada para me dar lições diárias sobre Juche, a ideologia oficial do país. Todos reagiram com grata surpresa. Houve palmas, seguidas por olhares curiosos pela minha reação.

No início da tarde, durante um banho, senti o prédio balançar. Estava no 27º andar. Corri e liguei a tevê. Dois dos canais estrangeiros aos quais tinha acesso no quarto informaram a detecção de dois fortes tremores na Coreia do Norte e a suspeita de um teste nuclear. Mas os norte-coreanos só podiam assistir à TV estatal. Ver um canal estrangeiro é punido com prisão e trabalho forçado. Pena que eu receberia se tentasse me comunicar com o mundo exterior sem autorização, fora de um telefone fixo do hotel, monitorado por ao menos um funcionário. Ou por um e-mail, por meio de um endereço de remetente desconhecido, sem direito a receber confirmação de envio ou qualquer retorno, mediante a prévia checagem do texto. 

 

[FOTO 2]

 

Prisão e morte

 

Seria imediatamente preso caso enviasse uma reportagem ou imagem da Coreia do Norte enquanto lá estivesse. No território norte-coreano, também poderia ser detido, julgado e condenado à morte por espionagem ou similar se fotografasse ou filmasse diversos lugares e situações, como um militar, um quartel ou algo que o governo considerasse depreciativo ou material de contrapropaganda, como alguém maltrapilho. 

 

Desembarquei no aeroporto de Pyongyang, em um voo da Air Koryo, a estatal de aviação norte-coreana, na tarde de 2 de setembro. De manhã, em Pequim, lera que um tribunal da Coreia do Norte havia acabado de condenar à morte dois jornalistas sul-coreanos e os diretores dos jornais para os quais trabalham por publicarem resenhas sobre um livro britânico que aborda a vida no país asiático. O tribunal considerou que os quatro homens cometeram o crime de “insultar gravemente a dignidade” do país ao entrevistar os autores do livro.

 

Os jornalistas podem ser executados a qualquer momento, segundo a decisão. “Os criminosos não têm direito a recorrer e a execução será realizada a qualquer momento e em qualquer local, sem procedimentos adicionais”, afirmou um porta-voz do tribunal à agência de notícias sul-coreana Yonhap. O Ministério de Unificação da Coreia do Sul condenou a sentença, afirmando que Seul “tomará as medidas necessárias para garantir a segurança dos cidadãos sul-coreanos”.

 

Os condenados residem na Coreia do Sul. Eu estava na Coreia do Norte, sem poder contatar a Embaixada do Brasil em Pyongyang. Além de reportagens para o Correio, um livro sobre a Coreia do Norte fazia parte do meu plano. Falei da intenção a um diplomata norte-coreano, na embaixada do seu país em Brasília, durante uma das duas entrevistas no processo para a obtenção de visto para jornalista, que levou quatro meses e incluiu muitos documentos. 

 

Vigiado e incomunicável

 

Após o controle de passaporte no aeroporto de Pyongyang, fui parado por seis militares. Pediram-me os cartões da máquina fotográfica. Tinha dois. Enfiaram ambos em um computador. Não encontraram nada. Estavam vazios. Mesmo após a minha única mala passar por aparelho de raios-x, a reviraram em busca de livros. Trazia Outras inquisições, coletânea de ensaios do argentino Jorge Luis Borges. Com ele em mão, digitavam um microcomputador. Suspeitei checarem se fazia parte da lista de publicações proibidas no país. Liberaram o meu livro 10 minutos depois, assim como a minha bagagem e o meu celular, também analisado. Sem sinal para ligação nem acesso à internet, o telefone teria pouca utilidade.

 

A partir de então, não tive liberdade. Confiscaram o meu passaporte após deixar o aeroporto de Pyongyang e entrar no Mercedes Benz fabricado nos anos 1980 e que me transportaria todos os dias. Sempre em companhia de três norte-coreanos funcionários do governo. Eles se apresentaram como motorista (que só falava coreano), guia (que dizia só entender o espanhol) e intérprete (dominava o inglês). Foi este quem, educadamente, pediu o meu passaporte e o visto — um pequeno papel timbrado com a minha foto e informações pessoais e da viagem. Sem dizer mais nada, colocou os dois documentos em uma pasta branca. 

 

Só recebi o visto norte-coreano, da mão do diplomata que me submeteu a entrevistas, no fim da manhã de 29 de agosto, horas antes de embarcar no aeroporto de Brasília rumo a Pequim, com duas conexões nos Estados Unidos. A capital chinesa é a única porta aberta aos visitantes da Coreia do Norte. Entrada permitida em quatro períodos do ano, em função das quatro maiores celebrações nacionais. Serviço vendido por agências privadas com escritórios em Pequim autorizadas pelo governo de Pyongyang.

 

A viagem é feita em grupo, que só deixa o hotel junto, em micro-ônibus com guia e intérprete. O valor do pacote varia com o número de pessoas que pretendem fazer a mesma viagem, pela mesma empresa, no mesmo período. Mesmo pagando, o viajante não pode escolher o hotel, as refeições nem a programação. Tudo é definido pela estatal Korea International Travel Company (KITC).

 

A única certeza é de que os hotéis impostos pelo regime são quatro estrelas — padrão estabelecido pelo governo para estabelecimentos construídos há mais de 30 anos, com mobília e acabamento da época, mas com manutenção impecável e grande oferta de produtos e serviços a preços razoáveis. São dois os destinados aos estrangeiros: Yanggakdo e Koryo, este considerado o melhor do país. 

 

Aulas de doutrina

 

O acesso de jornalistas à Coreia do Norte é ainda mais restrito. Poucos pedem. Quase nenhum consegue. Por isso, alguns se aventuram a entrar no país de forma clandestina, como turista, por meio das excursões. Na embaixada em Brasília, afirmaram que teria a possibilidade de visitar o país mais fechado do mundo por ser cidadão de um “país amigo”. Porém, fizeram uma série de exigências. Uma era que deveria me comprometer a reportar o que havia realmente visto e ouvido. Outra era participar de “discussões” sobre a ideologia Juche, com pesquisadores norte-coreanos.

 

Entrei na Coreia do Norte no ano 105. O país tem um calendário único, o calendário Juche, adotado a partir de 9 de setembro de 1997, o dia nacional da Coreia do Norte, data criada em função do nascimento de Kim Il-sung, primeiro líder do país depois da divisão entre o Norte e o Sul. O Juche é fruto de um modelo único de partido, originário de um sistema único de governança, o que deu origem à dinastia Kim. Inexistem anos “antes de Juche 1”. Anos antes de 1912 recebem números com base no calendário Cristão. Intervalos de anos que começam antes de 1912, e terminam depois são também indicados no calendário Cristão.

 

Na manhã de 3 de setembro, soube o que seriam as tais “discussões”. Aulas particulares sobre ideologia, em uma sala fechada do hotel, na companhia dois intérpretes, além do professor. Ao menos duas horas diárias, sem intervalo, por seis dias. A todo momento, era obrigado a resumir o que havia sido me dito e a responder se concordava ou não com a ideia. Caso considerasse minha fala pouco convincente, o professor repetia tudo que havia me explicado anteriormente.