O velho comunista O olhar de um recifense que morou na União Soviética Em 1985, Fernando Barbosa embarcou para Moscou. Voltou 15 anos depois, decepcionado com o fim do sonho soviético

Por: Mike Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 20/01/2017 11:00 Atualizado em: 20/01/2017 14:22


Um dos passatempos de seu Fernando, que morou em Moscou de 1985 a 2000, é ler algum dos seus 3000 livros. Foto: Shilton Araújo/Esp. DP (Um dos passatempos de seu Fernando, que morou em Moscou de 1985 a 2000, é ler algum dos seus 3000 livros. Foto: Shilton Araújo/Esp. DP)
Um dos passatempos de seu Fernando, que morou em Moscou de 1985 a 2000, é ler algum dos seus 3000 livros. Foto: Shilton Araújo/Esp. DP

Fernando Barbosa, 57 anos, era um estudante da UFPE e militante de esquerda no começo dos anos 1980. Uma juventude de lutas sociais e políticas o levou a viver em uma União Soviética já perto de se desintegrar. Em meio a um acervo de aproximadamente três mil livros, a reportagem do Diario conversou com ele em sua casa para conhecer como era a vida cotidiana na fria Moscou nos últimos momentos. Com a voz embargada, seu Fernando lembrou dos amigos que perdeu durante o bombardeio ao Parlamento Russo, em 1993. Com revolta, faz um paralelo entre a vida no Brasil e na URSS. Com esperança, sonha com uma sociedade mais igualitária.


Antes de partir para Moscou, seu Fernando fez o caminho de muitos simpatizantes do comunismo na época da ditadura. Em meados dos anos 1970, militou no legalizado MDB. Depois, passou para o clandestino Partido Comunista Revolucionário (PCR) e, com a redemocratização, foi para o Partido dos Trabalhadores (PT) e depois para o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foi quando, em 1985, por sugestão do partido, seguiu para estudar na URSS. “O que eu vivi na Rússia foi uma situação extremamente interessante. Cheguei a um país e saí de um que não existia mais. Voltei para o Brasil em 1999”. Ao chegar a Moscou, o país estava sob o comando de Mikhail Gorbachev, que já colocava em prática as reformas da Perestroika (reestruturação econômica) e Glanost (abertura política).

A adaptação teve seus percalços. “Não sou de aprender idioma com facilidade”, diz. "Chegando lá, você passa um ano estudando o idioma. E é completamente diferente. Você morar lá, viver lá, o dia inteiro o povo te enchendo o saco, você acaba aprendendo (russo). Além disso, é bom arranjar um namorado ou uma namorada local. Fica fácil de se virar, mesmo não aprendendo profundamente o idioma”.

Dois anos antes de voltar ao Brasil, testemunhou um episódio sangrento da vida pós-sovietica: o bombardeio do parlamento russo, durante mais uma das crises institucionais que a Rússia enfrentou. "Eu dizia aos meus amigos que só sobrevivi porque os caras se recusavam a atirar em gordo. Era tiro para tudo que era lado, sem pena. Eram tanques de guerra que os caras trouxeram para destruir completamente o prédio. Eles deram, como cifra oficial, pouco mais de mil mortos, mas foram muito mais. O rio Moscou estava cheio de cadáveres. Eu tive dezenas de amigos que desapareceram nessa época…”, relata, com a voz embargada.

Para um comunista que sonhou em viver os ideais soviéticos, o processo de desintegração foi um duro baque. "O começo pós-91 foi terrível, um período de destruição completa do país, que perdeu quase 30% da população". O cenário de decadência era gritante. "Centenas de pessoas nas ruas passando fome, sem emprego, sem condições de subsistência. Elas morriam de fato na rua, na miséria. Algo que não imaginávamos que acontecesse novamente na Rússia. A indústria quase parou totalmente".

"Eu não entendi na época. Simplesmente não entendia o que estava acontecendo. Cheguei a um ponto de pirar com o que estava acontecendo". Relata que foi parar no hospital, depressivo. "Era um país do qual eu tava preparado para ter a nacionalidade. Eu via as pessoas sendo humilhadas. Estava um caos total".

Trabalho e crise econômica
Em parte do tempo que morou em Moscou, Fernando trabalhou em uma fábrica de automóveis, mas em que se produzia de tudo. “Geladeiras, caminhões, tubulações de aço, o que você imaginar. Era uma verdadeira cidade dentro de Moscou. Dentro da fábrica tinha teatro, cinema, hotel, restaurantes, hospital, escola, universidade, tudo que fosse preciso. Gigantesca. Tinha até linha de metrô”. No auge, eram 80 mil operários, mas quando o pernambucano saiu de lá, o número não passava de cinco mil, já em franca decadência.


A relativa "igualdade" dos moradores da URSS chamou a atenção de Fernando. “A diferença fundamental era que se você era um engenheiro agrônomo de uma fazenda, por exemplo, num dia em que os trabalhadores de reunissem para dividir os títulos, você tem um poder de influência maior. Todo mundo sabe que sem você a fazenda não vai a nenhum lugar. Ninguém sabe o que plantar, onde vender, não sabe como colher”, afirma Fernando. “Então a classe de dirigentes das empresas e dos comércios tinha um poder maior que um trabalhador comum. Este poderia pegar suas ações e trocar por uma garrafa de vodka. Isso era muito comum. A máfia adorava isso porque legalizava o dinheiro dela”, relembra. Mas, assim como no capitalismo, alguns era "mais iguais que os outros". " “Essas pessoas eram ministros, eram gerentes-gerais, e começaram a adquirir um grande poder e muita riqueza. Esses são os atuais bilionários russos”, acredita.

A crise econômica batia pesado nos habitantes. “O país era uma zona legal. Eu mesmo perdi todas as economias que tinha. Pirâmide, já ouviu falar? Ninguém conhecia na época lá. O governo fazia propaganda do dono da pirâmide como um "gênio financeiro". O cara comprava um negócio que ele vendia, um papel lá, por um preço de "um real", à tarde vendia por dois. No dia seguinte já tava por três. Ele ganhava fortunas e isso não era ilegal. O capitalismo não existia no país”, lamenta, mas ri.

Com nostalgia, Fernando elogia a saúde (“era decente”) e se desdobra em boas lembranças da educação que o filho, Sérgio, teve no país. "Ele estudava de segunda  a sábado, de manhã até às 17h. Tinha inglês, piano, tênis, canto coral, eletrônica.. o professor de eletrônica dele era um gênio soviético, construtor do primeiro robô do país. O cara tinha se aposentado, queria ajudar a educação das crianças e criou um grupo de ensino de robótica", recorda. O domingo era dia fazer as tarefas. "Não tinha descanso. Ninguém ousava não fazer as tarefas de casa e ninguém ousava dizer que estavam tirando a infância das crianças. Ninguém ousava dizer que ensinar sete idiomas a uma criança era exploração, como se faz aqui", critica.

Saudoso, Fernando lembra de como era a educação na antiga URSS. Foto: Shilton Araújo/Esp. DP (Saudoso, Fernando lembra de como era a educação na antiga URSS. Foto: Shilton Araújo/Esp. DP)
Saudoso, Fernando lembra de como era a educação na antiga URSS. Foto: Shilton Araújo/Esp. DP

De acordo com Fernando, a URSS valorizava a formação humanista. "Mesmo estudando engenharia, eu tinha aulas de Filosofia, de matérias ditas 'Humanas'. Lá, quando entrei, fui fazer Engenharia todo orgulhoso. 'Engenheiro da URSS'. Grandes coisas. Os melhores alunos escolhiam as áreas de humanas. Letras, Filosofia, Jornalismo... você reconhecia uma pessoa por quando visitava sua casa e via o número de livros que ela tinha. Pelo número de idiomas que ela falava. Pela capacidade que ela tinha de conversar, debater, argumentar. Tudo isso era o que fazia a juventude. Roupas, adereços, nada disso era muito importante", relata, com a nostalgia de quem ainda sonha com um mundo menos desigual.