História A queda de um gigante: há 25 anos a União Soviética se despedaçava A principal potência socialista não resistiu às crises internas e externas e ao enfraquecimento dos seus líderes

Por: Mike Torres - Diario de Pernambuco

Publicado em: 20/01/2017 11:00 Atualizado em: 26/01/2017 19:42

 (Arte/DP)

O gigante monumento "Rodina-Mat' Zovyot!" ("A terra-mãe está convocando para a luta!"), na cidade de Volvogrado, antiga Stalingrado. Foto: Mikhail Mordasov/AFP Photo (O gigante monumento "Rodina-Mat' Zovyot!" ("A terra-mãe está convocando para a luta!"), na cidade de Volvogrado, antiga Stalingrado. Foto: Mikhail Mordasov/AFP Photo)
O gigante monumento "Rodina-Mat' Zovyot!" ("A terra-mãe está convocando para a luta!"), na cidade de Volvogrado, antiga Stalingrado. Foto: Mikhail Mordasov/AFP Photo

Os anos 1980 não foram fáceis para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O poderoso império que uniu, muitas vezes à força e sangue, 15 países da Ásia e da Europa já dava sinais que não se manteria coeso por muito mais tempo. A crise econômica e o enfraquecimento das lideranças comunistas foram o estopim que colocaram em xeque o modelo soviético consolidado em 1922. Ao adentrar os anos 1990, a contagem regressiva chegou ao fim: o último líder da URSS, Mikhail Gorbachev, renunciou ao cargo no dia de Natal de 1991. Há 25 anos, mergulhada em crises e corrupção, a União Soviética deixava de existir.

O olhar de um recifense que morou na União Soviética
O antes e depois dos países da ex-URSS

Em entrevista ao Diario, a professora do departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco Annamaria Fonseca afirma que "o Socialismo, sem condições de atender às 'necessidades históricas' das populações sob seu domínio, entra em colapso". As enormes filas para adquirir itens básicos e bens de consumo eram cenas cotidianas. Não havia mais facilidade para conseguir alimentos, materiais de higiene e lazer. As pessoas se amontoavam em aglomerações em frente às lojas estatais, muitas vezes ficando à espera sem nem saber qual produto era oferecido no estabelecimento.

A situação chegou a tal ponto que havia quem adquirisse produtos de que não precisava para usar, posteriormente, como moeda de troca. Jaime Spitzcovsky, correspondente na URSS do jornal Folha de S. Paulo à época, relata que uma vizinha sua havia comprado alguns pares de sapatos masculinos, a fim de trocá-los depois por cosméticos.

Mikhail Gorbachev promoveu uma abertura, que acabou por levar o país à ruína. Foto: Odd Andersen/AFP Photo (Mikhail Gorbachev promoveu uma abertura, que acabou por levar o país à ruína. Foto: Odd Andersen/AFP Photo)
Mikhail Gorbachev promoveu uma abertura, que acabou por levar o país à ruína. Foto: Odd Andersen/AFP Photo

A percepção da crise, contudo, não era algo linear. A professora Annamaria Fonseca conta que "os indivíduos que já viviam antes da instalação do Socialismo, com a Revolução de 1917, que passaram fome, frio, quando não havia escolas para todos, saúde também muito precária, chegaram à década de 1980 ainda satisfeitos com o que a Revolução havia trazido: moradia (mesmo que precária), sistema de saúde satisfatório, assim como o sistema escolar que eliminou o analfabetismo”.

Entretanto, "as gerações que vieram depois, já acostumadas com o que o sistema lhes proporcionava, queriam mais, muito mais. Queriam bens de consumo modernos, como TVs, roupas e sapatos de boa qualidade, calças jeans, assim como liberdade de ir e vir, de ler o que o Ocidente publicava", explica, lembrando que o sistema corrente não permitia nada disso.

O jornalista Timothy Bancroft-Hinchey, chefe de redação da versão em português do portal Pravda - versão online do jornal de mesmo nome que por décadas foi o veículo oficial de propaganda do governo soviético -, tem uma visão bem mais otimisita para os motivos da queda. Para ele, o idel soviético "já tinha atingido os seus objetivos", que seriam "trazer um país e uma sociedade medieval para a primeira linha de desenvolvimento nas áreas de ciência, tecnologia, progresso social e educação". Essas medidas, segundo o jornalista, deixaram "qualquer cidadão da ex-União Soviética muitíssimo bem colocado em competição com qualquer outro cidadão no mundo em qualquer área de conhecimento".

A Perestroika e a Glasnot
Em março de 1985,  Mikhail Gorbachev se tornou o número um da União Soviética. Membro do aparato do Partido Comunista, Gorbachev, de 56 anos, foi um líder jovem em comparação aos últimos três dirigentes que o precederam. Ele logo iniciou a reforma batizada de Perestroika ("reconstrução", em russo), amplo programa destinado a enfrentar a queda do preço do petróleo, a falta crônica de bens de consumo e o aumento da dívida estatal. O professor do departamento de Comunicação Social da UFPE Heitor Rocha é incisivo. "O país estava se deteriorando. Então a abertura só fez acelerar a insatisfação do povo e o desmantelamento da URSS, se dividindo em várias novas repúblicas", explica Heitor.

O programa da Glasnot (“transparência”) se seguiu com a pretensão de mostrar um governo mais aberto ao diálogo com a população e oferecer maior abertura política, além de liberdade de imprensa aos meios de comunicação. "A Perestroika e a Glasnost davam à juventude o que seria uma mostra de uma abertura econômica e política, e a tudo aquilo que ansiavam, principalmente as liberdades democráticas", afirma a professora Annamaria Fonseca.

Abertura trouxe descontentamento com antigo regime
Vislumbrando os bens de consumo do capitalismo, vários setores da sociedade soviética se mobilizaram em ondas de manifestações. Pressionado pela comunidade internacional e enfrentando uma grave crise econômica, o estado soviético sofreu, em agosto de 1991, um golpe de estado orquestrado pelas alas extremistas do Partido Comunista. Gorbachev foi deposto.

Boris Yeltsin se dirige à multidão do alto de um tanque em Moscou durante a tentativa de golpe de Estado de agosto na URSS. Foto: Arquivo/AFP Photo (Boris Yeltsin se dirige à multidão do alto de um tanque em Moscou durante a tentativa de golpe de Estado de agosto na URSS. Foto: Arquivo/AFP Photo)
Boris Yeltsin se dirige à multidão do alto de um tanque em Moscou durante a tentativa de golpe de Estado de agosto na URSS. Foto: Arquivo/AFP Photo

Liderada pelo presidente da Rússia Bóris Iéltsin, uma revolta contra os golpistas reconduziu Gorbachev ao poder três dias depois. Em retaliação ao golpe (ou um pretexto bem urdido) Iéltsin baniu o Partido Comunista de sua república. Apesar do apoio da população e do aparente suporte de Iéltsin, Gorbachev retornou à liderança praticamente sem comando. Enfraquecido, renunciou à presidência em 25 de dezembro de 1991. No dia 31, as estruturas governamentais e administrativas da União Soviética deixaram de existir oficialmente, colocando fim a 69 anos de regime socialista.

Ajustes dolorosos
A troca de sistema foi traumática para a Rússia e para as outras repúblicas soviéticas. Gorbachev saiu e passou o protagonismo a quem, de fato, já exercia o poder, Bóris Iéltsin. "Esta mudança envolveu uma década de ajustamentos, que foi bastante dolorosa porque, quando se muda um governo forte por um fraco, liderado por um incompetente alcoólico - que foi o palhaço chamado Iéltsin -, há caos", ataca Bancroft-Hinchey, ainda sugerindo, como muitos na época achavam, que Iéltsin recebeu ajuda da CIA para se infiltrar e desmantelar a União Soviética.

Páginas do Diario ao fim de 1991 sobre o colapso do gigante socialista. Foto: Arquivo/DP (Páginas do Diario ao fim de 1991 sobre o colapso do gigante socialista. Foto: Arquivo/DP)
Páginas do Diario ao fim de 1991 sobre o colapso do gigante socialista. Foto: Arquivo/DP

O fim da URSS não só atingiu as ex-repúblicas soviéticas, mas deixou vulnerável toda a política socialista. O falecido cientista social Jacob Gorender relembrou em um artigo: "Em julho de 1991, ouvi de um intelectual cubano, em Havana: 'Durante trinta anos, tivemos a certeza de que o campo socialista era eterno. Nesta certeza fundamental, apoiávamos o nosso projeto de construção do socialismo em Cuba. Agora, o campo socialista deixou de existir. Ficamos desorientados com relação ao nosso projeto e ao nosso futuro'".

"A dissolução da URSS pôs fim a uma estrutura política multinacional que, após a Primeira Guerra Mundial, só conseguiu uma sobrevida graças ao domínio ditatorial do Partido Comunista como partido único dirigente, por princípio constitucional. Submetida a poderosas forças centrífugas no curso da Perestroika, aquela estrutura não conseguiria manter-se após a desagregação do Partido Comunista. Seu término estava selado”, sentenciou Gorender.