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EMERGÊNCIAS MÉDICAS

Técnica que 'ressuscitou' células de porcos pode ser usada em humanos no futuro

Publicado em: 04/08/2022 07:26 | Atualizado em: 04/08/2022 07:56

 (Foto: Anthony DeCarlo - University Yale )
Foto: Anthony DeCarlo - University Yale
Quando o coração para de bater, interrompendo o fluxo sanguíneo, uma série de reações leva à destruição das células. O processo é rápido e, em minutos, os danos podem ser irreversíveis. Porém, pesquisadores liderados pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos, conseguiram restaurar o metabolismo e a função de tecidos vitais, incluindo o coração e o cérebro, de porcos declarados mortos. A técnica, chamada OrganEx e descrita na revista Nature, é uma continuação de um experimento realizado por eles há três anos e abre caminho para novos tratamentos de emergências médicas, além da melhor conservação de órgãos para transplantes.

Em 2019, os pesquisadores recuperaram células cerebrais de porcos decapitados horas antes — eles haviam sido abatidos para consumo alimentício. Nem naquela ocasião nem agora, porém, se tentou restaurar a atividade elétrica do órgão. Ou seja, os animais não foram ressuscitados, mas as funções de suas células, sim. Em tese, o procedimento poderia ser aplicado em pessoas que sofreram infarto ou acidente vascular cerebral, com uma chance considerável de reverter os danos causados pela interrupção do fluxo de oxigênio. Porém, essa é uma possibilidade ainda remota, ressaltaram os autores, em uma coletiva de imprensa on-line.

"O que é extraordinário neste estudo é que, em muitos diferentes órgãos, uma quantidade muito grande de funções de diferentes células foi recuperada. Mas eu gostaria de reforçar que estamos muito longe de sequer pensar em fazer um estudo semelhante em seres humanos", disse o autor correspondente, Nenad Sestan, neurologista em Yale. Se, na primeira experiência do grupo, apenas células do cérebro foram reativadas, agora também foi possível recuperar funções de tecidos de coração, rins, fígado e pâncreas.

O uso mais provável, segundo os cientistas, e também ainda distante do ponto de vista clínico, é para preservar órgãos, com a finalidade de transplantá-los. A doação de órgãos pode ser dividida em duas categorias: após a morte circulatória e após o óbito cerebral. "Atualmente, a maioria das doações de órgãos acontece após a morte encefálica: o tronco encefálico deixou de funcionar permanentemente, mas o corpo é funcional", explica Anders Sandberg, pesquisador da Universidade de Oxford, comentando o estudo. "No entanto, mesmo nesses casos, haverá um período sem circulação antes que a circulação artificial possa ser instituída, e os órgãos provavelmente sejam danificados."

Devido a esse fato e à escassez global de doadores, há um grande interesse em métodos de preservação envolvendo perfusão em máquinas oxigenadas, que tentam reduzir o risco de danos e conseguem melhorar o desempenho de órgãos já no limite do uso. Um exemplo da técnica que ficou conhecido especialmente durante a crise da pandemia de covid-19 é a oxigenação por membrana extracorpórea (Ecmo), equipamento que promove a circulação sanguínea e de O2 do paciente, funcionando como um pulmão e coração artificiais.

Atividade elétrica
 
No estudo atual, a equipe testou uma tecnologia mais avançada em animais que foram induzidos a sofrer um ataque cardíaco. Uma hora depois da morte constatada, os cientistas utilizaram a OrganEx, que consiste em um dispositivo semelhante à Ecmo, aliado a um fluido experimental, que contém compostos capazes de promover a saúde celular e impedir a inflamação em todos os órgãos.

Os corpos dos porcos ficaram por seis horas sob o regime. Passado esse tempo, os cientistas descobriram que o metabolismo celular estava ativo em tecidos vitais, como coração e fígado, e que algumas funções de órgãos haviam sido restauradas. Eles encontraram evidências, por exemplo, de atividade elétrica no coração, que manteve a capacidade de se contrair.

"Sob o microscópio, era difícil dizer a diferença entre um órgão saudável e um que havia sido tratado com a tecnologia OrganEx após a morte", disse, na coletiva, Zvonimir Vrselja, coautor do estudo. Os pesquisadores também compararam o desempenho da tecnologia ao da Ecmo e observaram que a nova abordagem recupera um número maior de células e de funções. "Nesse estudo, aprendemos que as células não morrem do jeito como pensávamos, abrindo a possibilidade de, como uma intervenção, dizer a elas para não morrer", comemorou Vrselja.

Clínica distante
 
"Embora o experimento tenha sido feito em porcos, ajudar os humanos é um objetivo óbvio, e o impacto mais óbvio está na doação de órgãos. A tecnologia do artigo pode ajudar a superar o risco de destruição dos órgãos, possibilitando mais transplantes", destaca Sandberg, da Universidade de Oxford. Mas, apesar dos resultados positivos, os cientistas ressaltam que há muito caminho pela frente. "Sentimos desapontá-los, mas estamos muito distantes de um uso clínico", disse Stephen R. Latham, do Centro Interdisciplinar de Bioética de Yale. "Descobrimos que, sim, é possível restaurar a função metabólica de uma grande cadeia de órgãos, mas temos de estudar com muito mais detalhes o grau de danos isquêmicos antes de tentar um experimento com um ser humano. E estamos muito longe disso."

Ainda assim, especialistas estão empolgados com as possibilidades futuras do método. "O OrganEx poderia preservar órgãos de pessoas que morreram, mas cuja causa básica da morte permanece tratável, como atletas que morrem repentinamente de um defeito cardíaco, pessoas que morrem por afogamento ou por sangramentos maciços após um acidente de carro", acredita Sam Parnia, professor de Medicina de Cuidados Intensivos e pesquisador de técnicas de ressuscitação da Universidade de Nova York.

"O sistema OrganEx pode preservar os órgãos dessas pessoas e evitar danos cerebrais por horas em pessoas após a morte", continua Parnia, que não participou do estudo. "Isso dará tempo para os médicos corrigirem a condição subjacente, como um vaso sanguíneo bloqueado no coração que levou a um ataque cardíaco maciço e morte, ou reparar um vaso sanguíneo rompido que levou à morte por hemorragia, restaurar a função dos órgãos e trazer essas pessoas de volta à vida muitas horas após a morte."

Criados embriões sintéticos
 
 
 (Foto: Instituto Weizmann de Ciências/Divulgação)
Foto: Instituto Weizmann de Ciências/Divulgação

Pesquisadores do Instituto Weizmann de Ciências, em Israel, desenvolveram embriões sintéticos de camundongos fora do útero a partir de células-tronco cultivadas em uma placa de Petri — ou seja, sem o uso de óvulos fertilizados. O método, testado pela primeira vez, abre novos horizontes para estudar como essas estruturas formam os órgãos no ser vivo em desenvolvimento e, segundo os cientistas, pode, um dia, levar à criação de tecidos e órgãos para transplante a partir de modelos artificiais.

No estudo, publicado na revista Cell, os pesquisadores pretrataram células-tronco por 48 horas para expressar em dois tipos de genes: reguladores da placenta ou do saco vitelino. "Demos a elas um impulso para dar origem a tecidos extraembrionários que sustentam o embrião em desenvolvimento", disse, em nota, Jacob Hanna, do Departamento de Genética Molecular de Weizmann, que liderou a equipe.

Logo após serem misturados dentro de um dispositivo desenvolvido pelos pesquisadores, as células se reuniram em agregados, a grande maioria dos quais não conseguiu se desenvolver adequadamente. Mas cerca de 0,5% (50 em 10 mil) passou a formar esferas, cada uma das quais mais tarde se tornou uma estrutura alongada semelhante a um embrião.

Os modelos sintéticos se desenvolveram normalmente até o dia 8,5 — quase metade da gestação de 20 dias do camundongo. Trata-se do estágio em que todos os progenitores de órgãos iniciais se formaram, incluindo um coração pulsante, circulação de células-tronco sanguíneas e um cérebro com dobras bem formadas. Quando comparados com embriões naturais de camundongos, os artificiais apresentaram uma semelhança de 95% tanto na forma das estruturas internas quanto nos padrões de expressão gênica de diferentes tipos de células.

"É um feito impressionante e que pode abrir diversos horizontes. Muitos dos avanços na medicina, de tratamento, de conhecimento, provêm da pesquisa básica, como desse embrião sintético. Agora, precisamos acompanhar para ver se realmente terá aplicabilidade clínica", avalia Hitomi Miura Nakagawa, ginecologista e membro da Diretoria da Associação Brasileira de Reprodução Assistida (Sbra).

A médica lembra que, embora o uso de células-tronco embrionárias humanas seja permitido em vários países, como o Brasil, existem questões éticas e ideológicas por trás dessa questão. "É claro que ainda há um longo caminho a ser percorrido. É um primeiro passo. Se você não usa células-tronco de embrião fecundado, cujos resultados de pesquisa foram frustrantes, pode ser que aumente a aceitação pela sociedade dos futuros tratamentos advindos dessas iniciativas", observa.

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