Preconceito Homens e mulheres com hanseníase vivem isolados em colônia de Goiás Administração pretende demolir os pavilhões, lar dos pacientes

Por: Correio Braziliense

Publicado em: 01/02/2015 15:51 Atualizado em:

Pavilhão da Santa Marta, habitado por pacientes: construção deve ser demolida para que seja erguido um centro de saúde, e os moradores passariam a viver juntos em uma casa. Foto: Marcelo Feirreira/CB/D.A Press
Pavilhão da Santa Marta, habitado por pacientes: construção deve ser demolida para que seja erguido um centro de saúde, e os moradores passariam a viver juntos em uma casa. Foto: Marcelo Feirreira/CB/D.A Press
As cercas verdes recém-pintadas delimitam uma história que ainda não acabou. Isolados entre lembranças e prédios desgastados pelo tempo, 25 pacientes habitam os pavilhões da antiga Colônia Santa Marta, localizada em Senador Canedo (GO), município distante 10km de Goiânia. São pessoas cuja história de vida está escrita pelas marcas que a hanseníase deixou no corpo. Arrancados do convívio social no passado, elas aprenderam a viver obedecendo regras — as impostas pelo Estado e pelos profissionais de saúde. E, mesmo quase 30 anos depois da chegada da cura da doença ao sistema público de saúde e do fim do asilamento no Brasil, esses pacientes não sabem seguir sem a proteção que sempre lhes foi obrigada.

Símbolo de uma política de saúde pública ultrapassada, os 19 homens e as seis mulheres que insistem em viver nos pavilhões da Colônia Santa Marta veem aos poucos a vida que eles construíram seguir o mesmo destino das casas da vila, que, sem reformas estruturais, estão ruindo. Dos imóveis que resistem, uma parte está vazia, outra está cheia de entulhos e lembranças. “Sabe, neném, muita coisa mudou por aí. Antes, tinha mais gente, mais moças, mais rapazes; hoje, tem menos. Esse lugar e quem mora aqui são a minha família”, conta Messias Pereira dos Santos, 50 anos, internada na colônia desde os 14 anos.

A fonte central com a imagem de Nossa Senhora está seca. Os antigos comércios e o posto da Polícia Militar não funcionam mais. O hospital está separado da vila por uma cancela, e a entrada é permitida mediante autorização dos seguranças. Quem era acostumado a cortar caminho para ter acesso mais rápido ao ponto de ônibus tem que dar a volta. O clube e a antiga capela podem ser demolidos, bem assim como os próprios pavilhões nos quais vivem os pacientes. De construção recente na Colônia Santa Marta, apenas os modernos ambulatórios e as unidades de saúde.

Boa parte dos residentes nos pavilhões foi levada para a colônia pelo carro da Vigilância Sanitária, conhecido como a Onça. O veículo passava nas casas dos doentes e os obrigava a ir para lá. Nesse momento, muitos pacientes perderam os vínculos com a família e os amigos. Por isso, hoje, preferem continuar vivendo no local que lhes foi determinado no passado. É o caso de Francisco Réges, o Chicão, 75 anos, e de Osório Gonçalves Vieira, 98, que nunca receberam visitas de familiares. Muitos até rejeitam os laços com a família. “Parente não está com nada. Prefiro viver aqui”, afirma Joaquim Ângelo Teixeira, 53. Os que têm família fora temem o encontro e a possibilidade de não voltarem para o pavilhão. “Eu quero visitar minha mãe na fazenda, mas vou voltar”, promete Joaquim Viera da Luz, 56.

Os principais laços dos moradores da Colônia são com outros pacientes, religiosos e funcionários da colônia. Chicão, por exemplo, não gosta de perder a aula da professora Maria Lúcia Alves Parlandim, 58. “Às vezes, ele não vem à aula, aí eu vou lá no pavilhão e converso com ele. Aqui, é difícil ganhar a confiança porque eles já foram muito rejeitados, mas, quando a gente consegue, é muito gratificante”, afirma a professora. Seu Osório não pode ver a enfermeira Leonízia Gonçalves dos Santos, 60, que logo abre um sorriso. “Gosto de cuidar deles, de ouvir as histórias deles”, comenta a profissional de saúde.

Mas não só os pacientes internados sofrem com o fim gradual da colônia. Fora do limite das cercas, vivem por volta de 370 pessoas, muitas delas ex-pacientes ou filhos dos portadores de hanseníase. Como o terreno pertence à Secretaria de Saúde do Estado, os moradores temem perder as casas e o local onde passaram boa parte da vida. “Ouvimos dizer que vão nos tirar daqui para construir um condomínio para os funcionários. Nós não temos escritura. Fui até Brasília pedir para a ministra deixar a gente aqui. A sorte é que o governador ainda não bateu o martelo sobre isso”, explica Vicente Pinto Leite, 80 anos, ex-paciente da Colônia Santa Marta e internado compulsoriamente em 1954.

Representação

Desde 2013, a Colônia Santa Marta é administrada pela Assistência Social e pela Associação Goiana de Integralização e Reabilitação (Agir), uma organização social (OS) contratada pelo Estado de Goiás. Com o nome de Hospital de Dermatologia Sanitária e Reabilitação Santa Marta (HDS), a ideia da OS é transformar o local em centro de referência na saúde do homem e do idoso. “Hoje, a hanseníase se trata nos postos de saúde. Por isso, nosso objetivo é tratar aqui apenas as deformidades causadas pela doença. A unidade vai focar em outras questões de saúde pública”, explica Cledma Pereira Ludovico de Almeida, supervisora de reabilitação psicossocial do HDS. Segundo ela, os pavilhões onde vivem os 25 pacientes serão demolidos para a construção do novo centro de saúde. “Vamos erguer uma casa só e colocar todos os pacientes residentes”, explica. Após as demolições e as reformas, Cledma espera construir um museu no local para que a história não seja apagada. “O Brasil faz hoje um trabalho de descolonização. Como essas pessoas não têm para onde ir, a gente cuida delas.”

Para representantes do Movimento de Reintegração das Pessoas atingidas pela Hanseníase (Morhan), a retirada dos 25 pacientes dos pavilhões e a possibilidade de demolição das casas dos ex-internos nas cercanias da colônia violam os direitos humanos e as orientações das Nações Unidas (ONU) em relação aos portadores de hanseníase. Por isso, o coordenador nacional do Morhan, Artur Custódio, denunciou na ONU, na semana passada, a situação da Santa Marta e de outras colônias brasileiras. Ele conseguiu uma reunião na Organização Mundial da Saúde (OMS), marcada para junho, em Genebra (Suíça), para falar sobre a situação dos antigos leprosários brasileiros. Segundo dados da Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, ainda existem 30 colônias. Durante o século 20, o Brasil teve mais de 100 asilos desse tipo.

“As colônias de hanseníase no mundo são protegidas por uma resolução da ONU, que recomenda a preservação histórica e o cuidado com as pessoas idosas que viveram o isolamento. A comunidade e a rede social criada são importantes para esses idosos que viviam nas colônias. O que está sendo proposto na Colônia Santa Marta é uma segunda expulsão. Elas foram expulsas da sociedade e agora vão ser novamentes expulsas para um conjunto habitacional mais longe. Colocar 25 idosos em uma casa única só ajuda o hospital, não as pessoas”, defende Artur.

A SDH informou que mandou uma comitiva à Colônia Santa Marta no último dia 26 e que está cobrando de autoridades legais melhores condições de infraestrutura para a região.

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