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Shakespeare nos Quatro Cantos de Olinda

Cada cidade tem o seu lugar de encontro entre tipos humanos de todas as gerações, estilos e costume

Marcus Prado

Publicado: 29/12/2025 às 08:48

Quatro Cantos/Edvaldo Rodrigues/DP/D.A Press

Quatro Cantos (Edvaldo Rodrigues/DP/D.A Press)

Cada cidade tem o seu lugar de encontro entre tipos humanos de todas as gerações, estilos e costumes. Faz parte da sua alma pulsante, dá vida ao cenário urbano, conectando histórias anônimas em um emaranhado de pressa, quimeras, devaneios, sonhos, que pulsam sob a pele da paisagem construída.

Seja uma praça, um calçadão à beira-mar, um mercado central ou até mesmo a esquina de uma rua tradicional, esses espaços funcionam como um palco democrático. Neles, as barreiras sociais costumam baixar a guarda.

Zurique teve o Spiegelgasse, local histórico conhecido como o berço do movimento dadaísta e o seu Cabaret Voltaire; Lisboa tem o Maria Caxuxa, no Bairro Alto, que abre as suas portas, curiosamente, a partir da meia-noite. O Rio de Janeiro tem na Lapa o seu secular Bar Brasil; a Avenida Guararapes, no Recife, teve o seu saudoso Bar Savoy, imortalizado no poema de Carlos Pena Filho, e o seu Capibar, em Casa Forte. Já os Quatro Cantos, na Cidade Alta de Olinda, tornaram-se um autêntico microcosmo da humanidade, como nas peças do dramaturgo imortal William Shakespeare.

Falar desse lugar na Marim dos Caetés e dos que fazem de lá um ponto de encontro quase diário é identificar, na sua maioria, o DNA dos personagens do bardo inglês, que nos deu, através da sua obra monumental, um inventário completo da alma humana.

Vejo nos Quatro Cantos numerosos motivos pelos quais o “elenco” de Shakespeare parece infinito. Para os moradores do Sítio Histórico — os mais olindenses da cidade Patrimônio Mundial da Humanidade —, tudo acontece nesse lugar que guarda a fama de ser o mais alegre da cidade e por onde passam turistas o ano inteiro.

Dizem-me antigos moradores que lá já foram vistos: namoros, noivados, casamentos feitos e desfeitos; traições de causar inveja a Alcibíades (líder político e guerreiro da Grécia, corajoso e bom estrategista, mas inescrupuloso). Há de tudo: ateus profissionais, agnósticos, filósofos existencialistas, dadaístas, surrealistas, vanguardistas, pós-modernistas, avarentos e usurpadores.

Encontram-se tipos como Macbeth e Lady Macbeth, movidos por uma intensa ambição pelo poder; proxenetas, como nas peças do dramaturgo inglês e nas de Plauto; cobradores de dízimos e pastores com o mapa da prosperidade na terra e no céu; cartomantes e ciganos, como na ópera A Cartomante, de Eduardo Frigatti.

Há mágicos, ilusionistas, palhaços, equilibristas, prestamistas, apostadores de loteria, tocadores de harpa, irmãos escolásticos, catequistas, vigários, doutores do templo, frades, cristãos-novos, freiras, sacristãos, trambiqueiros, cafetões e cafetinas (como na peça Abajur Lilás, de Plínio Marcos); vigaristas, bêbados, pintores de vários estilos, músicos e seresteiros que vão até a luz do ar matutino e ao último canto do galo.

Avistam-se falsos burgueses (como na peça de Molière); gays e lésbicas (que remetem a Guermantes, de Marcel Proust, e aos casos de Albertine e Andrée); viúvas namoradeiras, bonecos gigantes, máscaras e serpentinas (como na ópera Carmina Burana, de Carl Orff).

Há aqueles que tocam gaita e violino; paranoicos (que guardam traços com o infeliz Hamlet, príncipe da Dinamarca); e o amolador de facas — figura estranha, enigmática, que, no mesmo ritmo e lentidão do seu ato profissional, observa os passantes com um olhar sinistro.

Vejo muitos personagens silhuetados à espera de um autor; os que andam em busca do tempo perdido sem nunca o encontrar (o tempo devastador proustiano); briguentos e poetas que cultivam a eloquência.

Ainda: cachaceiros, padeiros, bonequeiros, asquerosos, banqueiros, agiotas, cambistas de jogo de azar, cínicos, inocentes e culpados, lenhadores e corta-jacas, porta-bandeiras, cidadãos de bem, sonegadores, cabotinos e chatos, fanfarrões, avarentos e velhacos (como Harpagão, o velho odioso de Molière), cornos acomodados e outros nem tanto; o lícito e o ilícito.

Há os carnavalescos (em uma mistura do Galo da Madrugada com o Homem da Meia-Noite) e os que se preparam para a partida, mas nunca saem de lá. No carnaval que, nesse lugar, dura de janeiro a dezembro, o que mais se vê são beijos e abraços coletivos, ostensivamente livres.

Nas peças do Bardo de Stratford-upon-Avon, o afeto não é apenas um detalhe, é o motor da trama, ousados. Beijos e abraços que lembram uma entrega que desafia as convenções, exatamente como Romeu e Julieta no balcão ou a paixão caótica em Noite de Reis.

Fala-se de um mentiroso e seus artifícios. Há quem nutra desconfiança de um mendigo que circula por lá, causador de graves transtornos. Faz lembrar o Odisseu: que se disfarçava de mendigo cretense e contava histórias falsas sobre sua identidade ao retornar a Ítaca.

Marcus Prado - Jornalista

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