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PL da Dosimetria — a fratura simbólica e moral da redemocratização

Quando o Parlamento decide revisar e encurtar penas aplicadas a condenados por atos golpistas — sobretudo àqueles que atentaram diretamente contra as instituições democráticas —, envia ao país um recado devastador

Felipe Sarinho

Publicado: 11/12/2025 às 09:38

Câmara aprova redução de penas para Bolsonaro e condenados por tentativa de golpe; em Pernambuco, a maioria dos votos foi contra a PL da Dosimetria./Reprodução

Câmara aprova redução de penas para Bolsonaro e condenados por tentativa de golpe; em Pernambuco, a maioria dos votos foi contra a PL da Dosimetria. (Reprodução)

Quando o Parlamento decide revisar e encurtar penas aplicadas a condenados por atos golpistas — sobretudo àqueles que atentaram diretamente contra as instituições democráticas —, envia ao país um recado devastador: crimes graves contra a ordem constitucional podem não receber punição proporcional à sua gravidade. Assim, o pacto que sustentou nossa reconstrução democrática passa a ser novamente erodido.

A dosimetria penal, concebida para ajustar sanções com critério e razoabilidade, perde, nesse contexto, sua função republicana. Em vez de instrumento de justiça, transforma-se em engrenagem de indulgência institucional. Não se trata apenas da modulação de penas, mas da própria confiabilidade do sistema de Justiça. Ao reabrir casos emblemáticos e criar brechas que favorecem grupos específicos, o Parlamento assume o papel de um poder parajudicial, operando como instância revisional do Supremo Tribunal Federal. Esse movimento viola frontalmente o princípio da generalidade das leis — segundo o qual normas não podem ser moldadas para atender a interesses particulares.

As consequências são imediatas e corrosivas. Quando leis e punições passam a depender do peso político de quem é beneficiado — ou da habilidade de negociar apoio —, o Estado de Direito se converte em moeda de troca. Abre-se um precedente perigoso, em que proteções institucionais deixam de ser universais e tornam-se matéria de conveniência, cálculo e oportunismo.

Para quem viveu a transição democrática dos anos 1980, o cenário atual tem sabor amargo. Aquele período foi marcado por um esforço coletivo de reconstrução moral e institucional, sustentado pela expectativa de que o Parlamento atuaria como guardião da nova ordem democrática. O que presenciamos agora, no entanto, representa uma distorção dolorosa desse ideal. Para gerações que viam na política uma promessa de justiça e igualdade, assistir à normalização da impunidade é um golpe profundo na própria consciência democrática.

Não se trata de uma disputa ordinária da política: trata-se de um sinal de alerta. A flexibilização de limites éticos e institucionais — sobretudo no trato de crimes contra a democracia — revela um processo acelerado de erosão das bases constitucionais. Esse risco se torna ainda mais evidente diante da votação do chamado PL da Dosimetria, que prevê a redução de penas de condenados pelos ataques de 8 de janeiro e pode abrir caminho para alcançar figuras centrais da política nacional.

Nos bastidores, esboça-se uma contrapartida igualmente grave: punições seletivas a parlamentares, oferecidas como gesto de equilíbrio político — um cenário em que a justiça se transforma em peça de barganha.

Se permitirmos que esse alicerce seja corroído por interesses imediatistas, abriremos um ciclo de impunidade, seletividade e fragilidade constitucional — tudo motivado por acordos circunstanciais que desmontam, tijolo por tijolo, a arquitetura democrática construída nas últimas quatro décadas.

Quem viveu a redemocratização e acreditou que a política, com todas as suas imperfeições, poderia ser instrumento de justiça, de reconstrução e de futuro, testemunha agora, com tristeza, uma capitulação diante da impunidade — um enfraquecimento da democracia promovido com aval institucional.

Defender o sonho democrático da década de 1980 não é pedir moderação: é pedir responsabilidade.

Felipe Sarinho*
Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal) e Professor de Teoria do Estado e Direito Constitucional da Unicap e da UPE.

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